PARTE [1] O funcionamento do sistema nervoso centralCAPÍTULO [6]Ver sumário |
As mitocôndrias desempenham papel crucial na função neuronal, não só por sua ação bioenergética central de produção de adenosina trifosfato (ATP), mas também porque são a principal fonte de espécies reativas de oxigênio (EROs), sendo responsáveis por manter a homeostase do cálcio. Assim, não surpreende que estudos recentes tenham mostrado que perturbações na fisiologia mitocondrial exercem efeitos profundos no desenvolvimento e na função neuronais, bem como que estejam relacionadas com a fisiopatologia dos transtornos psiquiátricos. Neste capítulo, são apresentados e revisados os mais recentes achados que corroboram a teoria da disfunção mitocondrial nos transtornos psiquiátricos, fornecendo uma visão geral atualizada sobre os componentes genéticos e fisiológicos das mitocôndrias e as evidências de anormalidades mitocondriais nos transtornos psiquiátricos.
Apesar do constante avanço da neurobiologia dos transtornos psiquiátricos nos últimos anos, há ainda considerável limitação envolvendo, principalmente, a área da psicofarmacologia. Um bom exemplo está relacionado ao transtorno depressivo. É surpreendente o fato de que, apesar de décadas após a divulgação da teoria das monoaminas e sua relação com a patogênese da depressão, o principal pilar dos atuais antidepressivos ainda se baseie nesse conceito, quando se sabe que há diversos outros mecanismos envolvidos na fisiopatologia desse transtorno. Com base nesse argumento, tornam-se primordiais a investigação e a descoberta de novas opções que possam atuar de forma mais ampla e eficiente em diversos componentes envolvidos com os transtornos psiquiátricos.
A mitocôndria tem-se tornado alvo de diversos estudos nos últimos anos. O conceito inicial de que tal organela tem propriedades autônomas está se tornando cada vez menos plausível, visto que, atualmente, a célula é considerada um maquinário integrado de proteínas que exercem suas funções de maneira simultânea e codependente. Sabe-se, por exemplo, que o aporte energético neuronal é estreitamente dependente da fosforilação oxidativa mitocondrial e que o comprometimento desta dificulta a obtenção da energia necessária ao bom funcionamento celular, uma vez que o aporte energético neuronal proveniente da glicólise é limitado. Se as mitocôndrias são necessárias para essas funções neuronais, faz sentido que o dano mitocondrial possa afetar o sistema nervoso central (SNC). Tal fato é visto constantemente em doenças genéticas mitocondriais que não só apresentam manifestações neurológicas, mas também maior incidência de transtornos psiquiátricos. Embora se possa dizer que esse aumento na prevalência de sintomas psiquiátricos em pacientes com doenças mitocondriais pode ser atribuído ao estresse crônico da doença, há um crescente corpo de evidências que sugerem que o comprometimento mitocondrial pode causar doenças psiquiátricas. Tais estudos têm explorado as conexões potenciais entre características mitocondriais, incluindo variação genética, comprometimento funcional e morfologia, com diversas doenças neuropsiquiátricas. Nesse contexto, o objetivo deste capítulo é revisar, de forma sintetizada, informações recentes a respeito da disfunção mitocondrial em relação a diversas condições psiquiátricas, com foco em transtorno bipolar (TB), esquizofrenia, transtorno depressivo maior, transtorno do espectro autista e transtorno de ansiedade generalizada.
Mitocôndrias
Durante muito tempo, as mitocôndrias foram consideradas principalmente como a "casa de força" da célula, produzindo a energia necessária para o metabolismo celular pela fosforilação oxidativa.1 Entretanto, sabe-se que elas também estão envolvidas em numerosos outros processos fisiológicos, como morte celular programada, imunidade inata, autofagia, sinalização redox, homeostase de cálcio (Ca2+), reprogramação de células-tronco, bem como na modulação da atividade neuronal, na morfogênese e na neuroplasticidade. Assim, ocupam uma posição estratégica na hierarquia das organelas celulares no que diz respeito a promover a vida celular ou terminá-la.2
As mitocôndrias são organelas únicas, pois contêm seu próprio DNA circular e maquinário de transcrição/tradução, que consistem de uma membrana externa e interna, um espaço intermembranoso e uma matriz mitocondrial. A matriz contém as enzimas necessárias para o ciclo de Krebs, que fornece doadores de prótons/elétrons para a cadeia de transporte de elétrons, a qual levará ao bombeamento de prótons (íons hidrogênio) pela membrana mitocondrial interna, criando um gradiente eletroquímico. Esse gradiente representa energia potencial armazenada e fornece a base do mecanismo de acoplamento, que recebe o nome de acoplamento quimiosmótico, o qual é usado para a síntese de ATP (do inglês adenosine triphosphate) por meio da enzima ATP sintase (complexo V).1
As mitocôndrias desempenham papel crucial na sinalização intracelular, particularmente por meio do Ca2+ intracelular. Tal elemento é o principal segundo mensageiro celular e contribui para a regulação da neurotransmissão e da plasticidade neuronal de curto e longo prazos no cérebro. A captação de Ca2+ do citosol pela mitocôndria regula a taxa de produção de ATP por meio da regulação de desidrogenases acopladas ao ciclo de Krebs. Além disso, o influxo de Ca2+ é responsável pela modulação da sinalização intracelular desse ciclo, regulando a motilidade e a morfologia mitocondriais, podendo levar à morte celular.3 Outro papel importante da mitocôndria é a regulação redox, uma vez que as mitocôndrias são a principal fonte intracelular de EROs, e estas influenciam a maioria das funções celulares, como, por exemplo, a diferenciação, a proliferação e a apoptose. Em situações patológicas, as EROs contribuem para o dano mitocondrial, e este, quando extenso, pode induzir a apoptose a partir de diferentes vias, por exemplo, por meio da liberação do citocromo c e de outros agentes pró-apoptóticos.4 Nesse contexto, processos de controle de qualidade mitocondrial são essenciais para prevenir o dano celular. Vários sistemas de controle de qualidade mitocondrial evoluíram para garantir a manutenção adequada e, quando necessário, o reparo da mitocôndria, incluindo defesas antioxidantes e regulação da produção de EROs, chaperonas, proteases, resposta a proteínas malformadas (UPR, do inglês unfolded protein response), biogênese e controle da capacidade mitocondrial por meio da transcrição, assim como alterações na dinâmica da morfologia mitocondrial, que ocorrem a partir de eventos de fusão e fissão, permitindo a troca de conteúdo mitocondrial e a segregação de mitocôndrias com danos terminais a fim de possibilitar a degradação por mitofagia.5
Uma vez que a organização temporal e espacial da função mitocondrial é tão crítica nos neurônios, o número de mitocôndrias disponíveis, assim como o controle de qualidade mitocondrial, é de primordial importância. A biogênese, a mitofagia (depuração mitocondrial) e a capacidade que as mitocôndrias têm de se unir e aumentar a massa mitocondrial (fusão) ou se dividir e aumentar os números mitocondriais (fissão) contribuem para isso. Assim, mitocôndrias danificadas ou subótimas podem sofrer fusão com mitocôndrias saudáveis para criar mitocôndrias-filhas plenamente funcionais nas quais o dano é diluído por meio da troca de materiais, permitindo a comunicação entre as mitocôndrias.6 Além disso, o aumento do número dessas organelas por meio do processo de fissão pode facilitar a distribuição das mitocôndrias ao longo do comprimento das neurites.5 Tal processo também pode servir para segregar os componentes mitocondriais danificados para posterior remoção por mitofagia.6 Segue-se que, se a motilidade é defeituosa ou o número de mitocôndrias é reduzido, elas podem suprimir as taxas de fusão ou diminuir o processo de mitofagia e, por fim, diminuir a saúde do pool mitocondrial.
Dada a importância dos processos de produção de ATP, sinalização de Ca2+, metabolismo de neurotransmissores e sinalização das EROs na transmissão sináptica, não surpreende que estudos recentes tenham mostrado que perturbações na fisiologia mitocondrial exercem efeitos profundos no desenvolvimento e na função neuronais, uma vez que tais eventos são regulados espacial e temporalmente nos neurônios por meio de localização, bioenergética e biogênese mitocondrial, todos fortemente influenciados pela dinâmica mitocondrial, o que implica fissão, fusão e transporte mitocondrial.7 Para sua atividade, os neurônios têm de manter a concentração intracelular de íons contra o gradiente de concentração por meio das bombas de Na+/K+- e Ca2+-ATPase, a partir de um processo de transporte ativo envolvendo a hidrólise do ATP para o fornecimento energético necessário. De fato, sabe-se que em células nervosas o gasto para o transporte de íons pode chegar a até 25% da ATP por elas produzida. Nesse sentido, estudos histoquímicos têm demonstrado que as mitocôndrias são recrutadas para zonas de alta atividade no neurônio durante a liberação de neurotransmissores em resposta ao aumento na atividade sináptica. Sabe-se que mitocôndrias em neurônios imaturos são mais móveis, menores e ocupam uma porcentagem menor do comprimento total do processo neuronal em comparação com os neurônios sinapticamente maduros, sugerindo que as exigências energéticas dinâmicas do desenvolvimento de neurônios, especialmente no que diz respeito à sinaptogênese, são atendidas por mitocôndrias altamente móveis que adotam uma morfologia menor para otimizar a motilidade. À medida que os neurônios envelhecem e estabelecem sinapses maduras, as mitocôndrias apresentam diminuição na motilidade e alongam-se para melhor atender aos múltiplos sítios.8 Como consequência, cada vez mais estudos têm sido desenvolvidos para avaliar se a disfunção mitocondrial pode contribuir para a disfunção sináptica nas doenças psiquiátricas.
Comprometimento mitocondrial e transtornos psiquiátricos
O cérebro, como tecido intensamente dependente de energia, é particularmente vulnerável aos efeitos da disfunção mitocondrial. Nas últimas décadas, tem havido considerável interesse na possibilidade de a disfunção mitocondrial ter papel na fisiopatologia de doenças psiquiátricas, assim como nos processos de envelhecimento, no câncer, em doenças metabólicas e neurodegenerativas.2
Como já citado, a ATP é um composto de alta energia usado para os processos metabólicos dos neurônios, sendo produzida principalmente nas mitocôndrias como produto da fosforilação oxidativa. Portanto, a disfunção mitocondrial resulta em diminuição da produção de ATP, consequentemente alterando a funcionalidade da Na+/K+- e Ca2+-ATPase e levando a aumento nas concentrações de Na+ e Ca2+ intracelular, resultando em alterações no potencial de ação. Além disso, o aumento na concentração de Ca2+ no interior da célula também pode induzir a desmielinização, desregular a apoptose e afetar os mecanismos de armazenamento, liberação ou captação de neurotransmissores, inclusive dopamina, glutamato e ácido gama-aminobutírico (GABA, do inglês gamma-aminobutyric acid).9 Todas essas alterações resultariam em remodelação estrutural e funcional das sinapses, alterando as transduções de sinalização intracelular e a projeção axonal. Assim, é proposto que a disfunção mitocondrial e a deficiência de ATP provavelmente estejam relacionadas à etiologia e à patogênese dos transtornos psiquiátricos.
Corroborando essa hipótese há um número crescente de evidências a respeito da associação entre disfunção mitocondrial e doenças psiquiátricas, em estudos tanto in vitro como in vivo. Déficits mitocondriais em transtornos psiquiátricos são sugeridos a partir de alterações no metabolismo energético cerebral, assim como por alterações na morfologia, na localização, no número e na função das mitocôndrias.10 Além disso, a redução de genes do DNA mitocondrial (mtDNA), a redução na expressão de subunidades da cadeia transportadora de elétrons, as alterações no sistema de defesa antioxidante e uma disfunção global do metabolismo cerebral em nível mitocondrial também foram descritas em associação a transtornos psiquiátricos. Em conjunto, esses achados sugerem que um déficit mitocondrial é suficiente para desencadear um ou mais transtornos psiquiátricos (Figura 1).10 Entretanto, dados sugerindo um papel para alterações mitocondriais em transtornos psiquiátricos são apenas correlações; portanto, resta determinar se tais alterações contribuem para o processo da doença ou se são apenas epifenômenos.
[ Figura 1 ]
As mitocôndrias são comumente conhecidas por seu importante papel na síntese de ATP a partir da cadeia de transporte de elétrons. No entanto, elas também operam em diferentes sistemas de controle, como o metabolismo de EROs e a homeostase do Ca+2. Vários eventos podem comprometer a função e a integridade mitocondriais, inclusive alterações na homeostase de Ca2+, danos ao mtDNA e ao nDNA, ativação de processos apoptóticos, aumento na produção de EROs, os quais estão relacionados com o estresse oxidativo, assim como diminuição na produção de ATP, o que resulta em diminuição da atividade das bombas Na+/K+ e Ca2+-ATPase e desencadeia diferentes respostas que levam à redução da sinaptogênese e da plasticidade sináptica. Em conjunto, tais alterações estão relacionadas à fisiopatologia dos transtornos psiquiátricos.
Ao mesmo tempo, está se tornando cada vez mais aparente que pacientes com distúrbios mitocondriais podem apresentar doença psiquiátrica comórbida. Há crescente conscientização de que a sintomatologia psiquiátrica é comum entre pacientes com citopatias mitocondriais conhecidas. Relatórios recentes indicam que 70% dos pacientes adultos com distúrbios mitocondriais terão evidência de transtorno mental importante em algum momento de suas vidas.11 Além disso, um estudo que usou espectroscopia de prótons por ressonância magnética demonstrou que os sintomas de ansiedade em pacientes com distúrbios mitocondriais correlacionaram-se com maiores níveis de creatina, glicerofosfocolina, mioinositol e glutamato + glutamina no hipocampo, enquanto a alteração dos níveis globais de testes de funcionabilidade correlacionou-se com maiores níveis de glutamato + glutamina e glicerofosfocolina no córtex cingulado.12
Em conjunto, as linhas de evidência revisadas, incluindo dados ultraestruturais, neurorradiológicos, bioquímicos e genéticos, parecem apontar para um possível papel da disfunção mitocondrial no mecanismo patológico de alguns transtornos psiquiátricos. No entanto, os mecanismos exatos pelos quais ocorrem déficits de metabolismo energético no cérebro de indivíduos afetados por transtornos psiquiátricos não são completamente compreendidos. Neste capítulo, exploramos os mecanismos da disfunção mitocondrial na fisiopatologia das doenças psiquiátricas.
Transtorno bipolar
O TB é um transtorno psiquiátrico grave e altamente incapacitante. Sua progressão está associada a prejuízos cognitivos e alterações neuroanatômicas aparentemente irreversíveis. O entendimento da fisiopatologia do TB se expandiu muito nos últimos anos, porém ainda se sabe pouco sobre os mecanismos dessa doença.13 A concordância entre gêmeos idênticos (monozigóticos) varia de 61 a 75%, e o risco mórbido de parentes de primeiro grau varia entre 1,5 e 15,5%, sugerindo que o TB tem alta herdabilidade, mas em modo de herança não mendeliana, uma vez que depende da presença de genes de vulnerabilidade e de sua interação com a influência ambiental.14 Análises de modelagem matemática sugerem que o TB é uma doença multigênica, com o envolvimento de grupamentos poligenéticos e variações alélicas em inúmeros locus distribuídos na população, sendo necessária, talvez, a combinação de vários desses locus para tornar o indivíduo suscetível a desenvolver o transtorno.14
Estudos de associação genômica ampla (GWAS, do inglês genome-wide association study) têm demonstrado associações significativas, robustas e replicáveis em vários polimorfismos comuns, incluindo variantes nos genes CACNA1C, ODZ4 e NCAN, assim como evidências de contribuição poligênica ao risco (muitos alelos de risco de pequeno efeito). Por sua vez, a análise do mtDNA tem demonstrado que polimorfismos funcionais em genes relacionados à homeostase do Ca2+, bem como em genes que codificam subunidades dos complexos I e II da cadeia transportadora de elétrons, estão associados ao TB.15 Além disso, estudos têm sugerido que alterações na expressão das proteínas DISC1 (do inglês disrupted-in-schizophrenia gene 1) e G72, as quais têm funções na fisiologia mitocondrial, podem estar relacionadas a aumento na suscetibilidade para desenvolver TB.16-17
Alterações bioenergéticas no TB têm sido descritas há mais de meio século. Diversos estudos apresentaram evidências robustas que apoiam o envolvimento da disfunção mitocondrial na fisiopatologia do TB, por meio de alterações que envolvem a fosforilação oxidativa, a via glicolítica, o metabolismo de fosfolipídeos, a diminuição na produção total de energia e/ou na disponibilidade de substratos, bem como anormalidades na morfologia e na distribuição intracelular das mitocôndrias.18 De fato, uma recente revisão integrativa da literatura, envolvendo estudos de neuroimagem, tem demonstrado níveis aumentados de lactato em várias regiões cerebrais e no líquido cerebrospinal em pacientes com o transtorno, o que indica aumento do metabolismo anaeróbico e extramitocondrial da glicose, consistente com um quadro de metabolismo mitocondrial debilitado no TB. Tal fato é consolidado por dados que demonstram que pacientes com TB também apresentam níveis cerebrais significativamente mais baixos de fosfocreatina (PCr, um composto de alta energia), bem como redução nos níveis de N-acetil-aspartato (NAA), juntamente com correlação negativa entre os níveis de NAA/creatina + PCr ou os níveis de NAA e a duração da doença, o que indica alterações de neurodesenvolvimento e fornece evidências indiretas de que a disfunção mitocondrial pode desempenhar um papel na progressão da doença.18-19 Além disso, demonstrou-se que pacientes com esse transtorno apresentam níveis reduzidos do fosfato inorgânico, um regulador da fosforilação oxidativa, e da atividade da Na+/K+-ATPase, assim como diminuição significativa nos níveis de adenosina difosfato (ADP, do inglês adenosine diphosphate), mas não nas concentrações de ATP, sugerindo que a redução pode ser impulsionada pelo aumento da atividade da adenilato-cinase, que pode reabastecer a ATP à custa da ADP.18 Agrega-se a essa hipótese o fato de que, durante o processo de estimulação visual, indivíduos saudáveis apresentam reduções significativas nos níveis de PCr, mas não nos níveis de ATP, como esperado uma vez que a PCr está sendo usada para a síntese de ATP a partir da reação da creatina-cinase. Porém, pacientes com TB apresentam um perfil diferenciado, uma vez que foram observadas reduções significativas nos níveis de ATP, mas não nos níveis de PCr. Além disso, nesses pacientes, o nível basal foi menor, e a mudança média durante a estimulação foi maior para a razão PCr/ATP, sugerindo que uma redução nos níveis de ATP durante a estimulação visual pode estar relacionada com o comprometimento da síntese de novo de ATP ou com a diminuição da transferência de fosfato de alta energia da PCr por meio da reação catalisada pela enzima creatina-cinase,20 a qual está alterada em pacientes com TB.18 Adicionalmente, um estudo recente demonstrou redução significativa na taxa de reação direta da creatina-cinase na ausência de alterações de concentração em ATP e PCr em pacientes com TB durante o primeiro episódio,21 corroborando os dados previamente apresentados, segundo os quais pacientes com o transtorno apresentam concentrações basais e normais de ATP e PCr, mas incapacidade de repor as concentrações de ATP no cérebro durante os períodos de alta demanda energética.20-21
Além de dados que mostram mutações no mtDNA e alterações no metabolismo energético cerebral, evidências também têm demonstrado alterações nos níveis de transcritos de genes, bem como nos níveis proteicos de subunidades dos complexos da cadeia transportadora de elétrons e enzimas do ciclo de Krebs. Uma reanálise recente dos estudos de microarray em cérebros post-mortem de pacientes com TB demonstrou diminuição na expressão de genes que codificam as subunidades dos complexos I-V da cadeia transportadora de elétrons, bem como em genes que codificam a isocitrato desidrogenase, sugerindo que os pacientes com o transtorno podem ser mais propensos a apresentar disfunção na atividade do ciclo de Krebs, assim como no processo de transferência de elétrons.18 Níveis inferiores dessas subunidades centrais podem aumentar a taxa de vazamento de elétrons por meio do complexo I, o que resulta em aumento na produção de EROs. De fato, diversos estudos têm apontado evidências de aumento na produção de EROs e estresse oxidativo em pacientes com TB. Em recente metanálise que integrou estudos que avaliaram marcadores de estresse oxidativo em pacientes com TB versus indivíduos saudáveis, foi demonstrado que os primeiros apresentam níveis mais elevados de dano lipídico, assim como dano ao DNA/RNA e níveis mais elevados de óxido nítrico.22
Corroborando o envolvimento da disfunção mitocondrial na fisiopatologia do TB, um recente estudo demonstrou que pacientes com o transtorno apresentam desequilíbrio entre os processos de fusão e fissão mitocondrial, observados por aumento nos níveis proteicos da proteína de fissão (Fis-1) e diminuição dos níveis de proteínas de fusão (Mfn-2 e Opa-1), sugerindo que o processo de dinâmica mitocondrial em pacientes com TB está disfuncional, o que pode resultar em aumento na fragmentação mitocondrial.23 De fato, observaram-se anormalidades morfológicas (mais mitocôndrias de menor tamanho) e um padrão anormal de aglomeração e marginalização na distribuição intracelular das mitocôndrias em neurônios do córtex pré-frontal de cérebro post-mortem e células periféricas de pacientes com TB.24 Além disso, sabe-se que alterações morfológicas e no processo de dinâmica mitocondrial podem diretamente ativar a via apoptótica. Tal fato foi evidenciado por aumento nos níveis proteicos da forma ativa da caspase-3, que se mostrou negativamente correlacionado com os níveis proteicos de Mfn-2 e Opa-1, bem como por diminuição em fatores antiapoptóticos (Bcl-xL, survivina e Bcl-xL/Bak dimer). Além disso, o mesmo estudo indicou que as alterações observadas perifericamente se correlacionaram diretamente com declínio funcional em pacientes com TB.23
Como descrito anteriormente, a dinâmica mitocondrial envolve não apenas os processos de fissão e fusão, mas também o movimento das mitocôndrias através dos neurônios, processo influenciado pela concentração de ATP e Ca+2. Além de alterações nos níveis de ATP, como já mencionado, estudos têm apontado que pacientes com TB apresentam alteração na sinalização intracelular de Ca+2, ocasionando aumento nas concentrações citosólicas de Ca+2, relacionado com excitotoxicidade, diminuição da viabilidade mitocondrial e, por fim, morte celular.9
Esquizofrenia
A esquizofrenia é uma doença devastadora que afeta mais de 21 milhões de pessoas em todo o mundo, com custo anual à sociedade de 33 a 40 bilhões de dólares. A esquizofrenia tem sido amplamente considerada como um transtorno do neurodesenvolvimento, de causa multifatorial, envolvendo fatores genéticos e ambientais. Um corpo crescente de evidências sugere que a fisiopatologia do transtorno está relacionada a uma função bioenergética anormal.25
De fato, diversos estudos têm mostrado que a patologia da esquizofrenia apresenta várias anormalidades associadas ao metabolismo da glicose, ao transporte de lactato e ao acoplamento bioenergético, sugerindo déficits de armazenamento e uso de energia no cérebro. Análises proteômicas destacam a expressão anormal de alvos bioenergéticos na esquizofrenia, incluindo reduções significativas na expressão de genes que codificam proteínas envolvendo a lançadeira do malato-aspartato, o ciclo de Krebs e enzimas que controlam a glicólise no córtex pré-frontal dorsolateral e no giro temporal posterossuperior de pacientes com o transtorno.26 Estudos post-mortem têm demonstrado que vários componentes dos complexos da cadeia transportadora de elétrons são regulados negativamente em cérebros de pacientes com esquizofrenia.27 Além disso, estudos de neuroimagem indicaram reduções em compostos de alta energia, como ATP e PCr, no lobo frontal, no núcleo caudado, no lobo temporal e nos gânglios da base em pacientes com esquizofrenia que não estão sob tratamento com antipsicóticos.28 Confirmando esses achados, estudos apontaram redução no consumo de oxigênio celular (respiração mitocondrial), assim como inibição da respiração celular causada pela dopamina em células-tronco pluripotentes induzidas (iPSCs) derivadas de folículos capilares e em linfoblastoides de pacientes com esquizofrenia.29
Além da função energética prejudicada, há evidências de alterações na dinâmica mitocondrial em pacientes com esquizofrenia. Pesquisas recentes demonstram alteração em proteínas ligadas aos processos de fusão e fissão mitocondrial, ambos em termos de mRNA e níveis proteicos. A primeira evidência de anormalidades na dinâmica intracelular da rede mitocondrial foi demonstrada em 2011, quando pesquisadores observaram que linfoblastoides derivados de pacientes com esquizofrenia exibiam uma estrutura de rede mitocondrial anormal, visto que as mitocôndrias pareciam estar em uma forma mais filamentosa e tendiam a se concentrar em uma área limitada da célula, diferentemente das células-controle, nas quais as mitocôndrias estavam uniformemente distribuídas por todo o citosol. O mesmo estudo indicou que essa anormalidade estrutural estava associada a alterações significativas na conectividade da rede mitocondrial, sugerindo que, embora as mitocôndrias em linfoblastoides derivados de pacientes com esquizofrenia tendessem a ser mais agrupadas, sua conectividade funcional estava alterada.30 Posteriormente, os achados prévios foram replicados em queratinócitos e neurônios dopaminérgicos derivados de iPSCs desses pacientes com esquizofrenia. Curiosamente, em neurônios glutamatérgicos derivados de iPSCs desses pacientes foi observada anormalidade na distribuição celular, mas, contrariamente aos neurônios dopaminérgicos, a conectividade não foi prejudicada, em virtude da redução da gravidade dos déficits na respiração basal e na eficiência de diferenciação notados nesses neurônios, sugerindo que a agregação é uma compensação para a conectividade reduzida.29 Ambos os estudos associaram a redução na conectividade mitocondrial com menores níveis da proteína Opa-1, uma das principais reguladoras da fusão mitocondrial, em linfoblastoides, neurônios dopaminérgicos derivados de iPSCs e em espécimes de córtex pré-frontal post-mortem de pacientes com esquizofrenia. Recentemente, um estudo complementar demonstrou diminuição nos níveis de proteínas relacionadas aos processos de fusão e fissão, Mfn-2 e Drp-1, respectivamente, em células mononucleares do sangue periférico e em linhas celulares linfoblastoides de pacientes com esquizofrenia.31
Além disso, o G72, um gene candidato para a suscetibilidade à esquizofrenia, mostrou afetar a fragmentação mitocondrial em várias linhas celulares de mamíferos, bem como em neurônios primários.17 Entretanto, ainda faltam evidências que demonstrem se o polimorfismo de nucleotídeo simples (SNP, do inglês single nucleotide polymorphism) encontrado no gene que codifica o G72 em pacientes com esquizofrenia altera a atividade de G72. No decorrer dos experimentos, observou-se que a superexpressão de G72 aumenta a fissão mitocondrial e promove a ramificação dendrítica em neurônios primários, mas sem alterar significativamente o comprimento total da árvore dendrítica, refletindo aumento no número de ramos mais curtos em detrimento dos mais longos. O aumento da fragmentação leva a números mais altos de mitocôndrias menores que se mostraram mais móveis, como mencionado anteriormente, e, portanto, podem ser rapidamente transportadas para locais de intenso crescimento, facilitando o aumento da complexidade dendrítica. Por sua vez, neurônios mais maduros transfectados com G72 apresentam fragmentação mitocondrial robusta, mas nenhum efeito na ramificação dendrítica, sugerindo que a superexpressão de G72 promove a ramificação dendrítica apenas no período de dendritogênese ativa em neurônios sinápticos imaturos.17 Outro forte gene candidato à suscetibilidade para esquizofrenia é o DISC1, uma vez que diversos achados apontam para uma complexa associação entre esquizofrenia e DISC1, incluindo a presença de diferentes locus de risco e efeitos de interação de SNPs.32 O DISC1 já foi identificado como regulador do tráfego mitocondrial em axônios em diversos estudos de knockdown e superexpressão. Um estudo mais recente realizou o silenciamento gênico do DISC1 em linhagem de células SH-SY5Y e observou que a ausência dessa proteína leva à desmontagem do complexo de organização das cristas mitocondriais, bem como à desmontagem dos complexos da cadeia respiratória mitocondrial, levando a graves defeitos bioenergéticos, evidenciados pelo baixo consumo de oxigênio, síntese de ATP e potencial de membrana mitocondrial, os quais foram restaurados pela transfecção do hDISC1, enquanto a superexpressão da forma truncada do DISC1 (Δ597-854), conhecida por ser patogênica, não foi capaz de recuperar o dano bioenergético causado pelo knockdown do DISC1.33
Transtorno depressivo maior
A etiologia do transtorno depressivo maior (TDM), apesar de não ser completamente compreendida, está associada à combinação de diversos fatores, entre os quais fatores biológicos, psicológicos e socioculturais. A patogênese do TDM foi, por muitas décadas, majoritariamente atribuída à hipótese das monoaminas e embasada nos mecanismos de ação de diversas medicações antidepressivas, como tricíclicos, inibidores da monoaminoxidase (IMAOs) e inibidores da recaptação de serotonina. Entretanto, avanços recentes em relação aos aspectos neurobiológicos dos transtornos psiquiátricos vêm demonstrando que a compreensão a respeito da fisiopatologia da depressão clínica não se limita apenas ao desequilíbrio de neurotransmissores, como dopamina, norepinefrina e dopamina.34 De fato, várias linhas de evidência sugerem que anormalidades em nível mitocondrial também desempenham papel fundamental na patogênese do TDM.
Partindo desse pressuposto, uma recente revisão da literatura apontou certas mutações no mtDNA envolvendo os genes ATP sintase 8 (ATP8), ATP sintase 6 (ATP6), ND5 e citocromo b (CYTB), as quais levam a alterações funcionais e podem estar relacionadas a danos cognitivos observados nos pacientes com TDM.35 Uma recente avaliação sistemática utilizando PCr mitocondrial identificou 16 genes que foram diferencialmente expressos no córtex pré-frontal dorsolateral post-mortem de pacientes com TDM, sendo eles genes funcionais relacionados aos processos de estresse oxidativo, assim como nos níveis neuronais de ATP,36 sugerindo uma ligação intrigante entre o mtDNA e/ou a expressão gênica com a fisiopatologia do TDM.37 Tais dados estão de acordo com achados observados em estudos de neuroimagem, os quais revelaram que pacientes com TDM apresentam níveis reduzidos do fluxo sanguíneo e do metabolismo bioenergético no córtex pré-frontal, no giro do cíngulo e nos gânglios da base.37 Acompanhando tais evidências, observou-se diminuição nos níveis de ATP no córtex pré-frontal dorsolateral post-mortem de pacientes com TDM,38 a qual pode estar relacionada às alterações na plasticidade neuronal e à neurogênese prejudicada no TDM, visto que, como mencionado, os processos de plasticidade e neurogênese demandam grande aporte energético.8
Além disso, uma recente revisão da literatura indicou que, em estudos tanto com humanos como com modelos animais de TDM, há evidências de alterações no metabolismo energético, observadas por meio de diminuição do consumo de oxigênio mitocondrial e eficiência de acoplamento, assim como por diminuição dos níveis proteicos e da atividade dos complexos da cadeia respiratória mitocondrial, as quais, em alguns casos, se correlacionam com os escores de depressão. Seguindo tal pressuposto, a mesma revisão sumarizou os estudos proteômicos conduzidos em cérebros post-mortem de pacientes com TDM e em modelos animais até então publicados, observando que, tanto em humanos quanto em modelos animais, há evidências de alterações na expressão de proteínas envolvidas no processo de fosforilação oxidativa, assim como em diferentes vias metabólicas e energéticas, salientando ainda mais a relação entre a disfunção mitocondrial e a fisiopatologia do TDM.37
Por fim, sabe-se que o eixo hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal (HHS) é um dos principais componentes envolvidos no TDM, particularmente os hormônios do estresse conhecidos como glicocorticoides e, sobretudo, cortisol, uma vez que estão relacionados a alterações na função mitocondrial, já que a exposição prolongada aos glicocorticoides tem diversas consequências, inclusive disfunção da fosforilação oxidativa, geração de EROs, apoptose e morte celular.39
Transtorno do espectro autista
O transtorno do espectro autista (TEA) caracteriza-se pelo acometimento do desenvolvimento neurológico, com consequente déficit na linguagem, na comunicação e na interação social, além de padrões de comportamento limitados e repetitivos. Embora o conhecimento sobre a etiologia do TEA ainda seja restrito, acredita-se que diversos fatores ambientais e genéticos, além de um componente neuroinflamatório, estejam interligados, e tal fato justifica a heterogeneidade fenotípica e genotípica encontrada nos indivíduos com TEA. Atualmente, diversas evidências apontam que a disfunção metabólica mais relacionada ao TEA é a de origem mitocondrial, de forma que 5 a 80% das crianças com autismo apresentam evidências de anormalidades na função dessa organela.40 Uma análise recente da literatura revelou que, embora alguns estudos tenham demonstrado aumento da atividade de certos complexos da cadeia respiratória mitocondrial, a maioria dos estudos em tecidos periféricos e cerebrais indicou diminuição nos níveis proteicos de complexos da cadeia transportadora de elétrons, assim como níveis plasmáticos mais elevados de piruvato, consistentes com menor atividade da piruvato desidrogenase. Além disso, observou-se que pacientes com TEA apresentam aumento na produção de peróxido de hidrogênio mitocondrial e aumento significativo nos níveis de hidroperóxidos lipídicos, um marcador de estresse oxidativo.41 Um estudo recente envolvendo uma análise comparativa entre sequências de RNA provenientes de amostras de tecido cerebral post-mortem de pacientes com TEA e indivíduos saudáveis revelou que há diminuição na expressão de genes relacionados à função mitocondrial em córtex cerebral de pacientes com TEA. O mesmo estudo constatou que esses mesmos genes estão correlacionados com a transmissão sináptica, de forma que há redução quantitativa de interneurônios inibitórios, em semelhança à esquizofrenia.42
Seguindo a hipótese de disfunção mitocondrial, um resumo dos estudos realizados nos últimos anos identificou evidências indiretas dessa disfunção em uma variedade de tecidos e amostras obtidos de crianças com autismo, incluindo deficiência de carnitina no plasma, acompanhada por níveis cerebrais diminuídos de NAA, creatina, PCr, colina e mioinositol, e elevações nos níveis de alanina e amônia, assim como uma taxa significativamente maior de lactato e distribuição heterogênea desse metabólito em locais como corpo caloso, giro temporal superior, giros pré e pós-central, porém o giro cingulado foi identificado como o local preferencial para sua detecção.41,43 Enriquecendo as evidências do envolvimento da disfunção mitocondrial no TEA, tem-se observado que a coexistência de doença mitocondrial em coortes com TEA é maior do que na população em geral.43 Além disso, tem sido demonstrado que o autismo apresenta associações com anormalidades na expressão de vários genes envolvidos na função mitocondrial, incluindo a sinalização de Ca2+.41
O coativador-1α do receptor ativado por proliferadores de peroxissomo gama (PGC-1α) desempenha uma função primordial em relação aos processos de biogênese mitocondrial, estresse oxidativo e metabolismo celular, de forma que a ausência desse fator compromete a viabilidade dos neurônios, tornando-os mais sensíveis ao estresse oxidativo. Com base nesse argumento, um experimento realizado recentemente verificou os efeitos do estresse oxidativo em pacientes com TEA, em comparação com indivíduos saudáveis, e concluiu que células linfoblásticas provenientes de pacientes com TEA apresentaram maior concentração intracelular e mitocondrial de EROs. Em decorrência disso, essas mesmas amostras exibiram menor atividade dos complexos I e III da cadeia respiratória mitocondrial. Ainda nesse estudo, as amostras desses pacientes com TEA foram manipuladas de forma que passassem a produzir maiores quantidades de PGC-1α, concluindo-se, então, que as células linfoblásticas tornaram-se mais resilientes ao estresse oxidativo, bem como permaneceram menos vulneráveis ao processo de apoptose.44 Tal evidência é sustentada por estudos anteriores que demonstram que pacientes com TEA apresentam níveis maiores de dano a DNA, proteínas e lipídeos e diminuição nas defesas antioxidantes enzimáticas e não enzimáticas.41
Transtorno de ansiedade generalizada
O transtorno de ansiedade generalizada (TAG) caracteriza-se sobretudo por ansiedade e preocupações em demasia, associadas a prejuízos na vida social, ocupacional e outros. Embora os fatores genéticos desempenhem papel importante e inquestionável na etiologia do TAG, estudos baseados nas análises de proteoma, metaboloma e bioinformática têm apontado que a fisiopatologia do TAG pode estar relacionada a alterações no metabolismo energético, no transporte mitocondrial, bem como no estresse oxidativo. Entretanto, cabe ressaltar que a grande maioria dos estudos que avaliaram a função mitocondrial no TAG foi desenvolvida usando modelos animais.45-46 Tais estudos demonstraram aumento da expressão de mais de 60 proteínas em todas as subunidades da cadeia de transporte de elétrons, resultando em aumento do estresse oxidativo e diminuição da capacidade antioxidante em camundongos com alto comportamento relacionado à ansiedade alta (HAB, do inglês high anxiety-related behavior).45-46 Baseando-se nessa hipótese, estudos têm indicado que a manipulação farmacológica da mitocôndria exerce efeitos ansiolíticos in vivo. De fato, um estudo que avaliou o efeito da administração de MitoQ, um composto responsável por aumentar a proteção mitocondrial contra danos oxidativos, apontou diminuição do comportamento relacionado à ansiedade em camundongos HAB, efeito caracterizado por expressão proteica alterada no cérebro e assinatura distinta de metabólitos no cérebro e no plasma de camundongos HAB. Observou-se que, após o tratamento com MitoQ, ocorreu aumento nos níveis cerebrais da xantosina 5-fosfato, difosfato de uridina, assim como na atividade da catalase e na expressão da malato desidrogenase. Já no plasma, observou-se aumento nos níveis plasmáticos de sete metabólitos (2-ceto-isovalerato, alanina, dCMP, fumarato, ácido málico, mio-inositol e prolina), diminuição nos níveis de quatro metabólitos (frutose-6-fosfato, dissulfeto de glutationa, hexose-fosfato e ácido metilmalônico) e aumento significativo na expressão da peroxirredoxina, uma enzima antioxidante.45 Além disso, a exposição crônica ao estresse pode promover redução nos níveis de Bcl-2, um fator antiapoptótico, tornando as células mais propensas a danos que podem estar relacionados à fisiopatologia do TAG, uma vez que camundongos geneticamente modificados heterozigotos para o gene Bcl-2 apresentaram maior proporção de comportamentos de ansiedade.47 Seguindo a mesma linha de raciocínio, evidências demonstraram, em mitocôndrias isoladas, que a superexpressão de Bcl-2 aumenta a capacidade de captação mitocondrial de Ca2+, aumentando a resistência da mitocôndria à inibição da respiração induzida por Ca2+.48
Evidências adicionais do envolvimento da disfunção mitocondrial foram sumarizadas em uma atualização que indica que o tratamento com IMAOs, conhecidos por suas propriedades ansiolíticas, está relacionado à melhoria da função mitocondrial, a qual pode estar relacionada à ativação dos receptores benzodiazepínicos mitocondriais, bem como com a modulação do efluxo mitocondrial de Ca2+ causada pelos neuroesteroides, visto que estes têm sítios de ligação específicos nas mitocôndrias.49 Por último, algumas evidências relataram que o uso de ansiolíticos em combinação com certos antioxidantes que atuam no fator nuclear eritroide 2 relacionado ao fator 2 (Nrf2) parece promissor e tem-se tornado alvo de ensaios clínicos prospectivos.50
Considerações finais
Além de fornecerem a maior parte da ATP celular, as mitocôndrias também desempenham papel central em uma ampla variedade de vias metabólicas e funções celulares. Uma vez que o cérebro utiliza cerca de 20% da ATP total do organismo, a disfunção mitocondrial impacta grandemente as funções cerebrais. Embora muitas questões permaneçam abertas, muitos estudos têm demonstrado que a disfunção mitocondrial, em nível tanto periférico quanto no SNC, está relacionada à fisiopatologia dos transtornos psiquiátricos; por conseguinte, a modulação da função mitocondrial pode ser promissora como nova modalidade de tratamento.
Esses estudos destacam a necessidade urgente de testar estratégias farmacológicas e comportamentais voltadas para a função mitocondrial no tratamento dos transtornos psiquiátricos. Além disso, espera-se que estudos futuros confirmem os modelos integrados que envolvem a causalidade correta da disfunção mitocondrial no desenvolvimento das doenças psiquiátricas.
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Conteúdo originalmente publicado em: QUEVEDO, J. ; IZQUIERDO, I. (Orgs.). Neurobiologia dos transtornos psiquiátricos. Porto Alegre: Artmed, 2020. 388 p.
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Autores
Giselli Scaini
Deborah Benevenuto
João Quevedo