CAPÍTULO [3] Psiconeuroendocrinologia

PARTE [1] O funcionamento do sistema nervoso central

CAPÍTULO [3]
Psiconeuroendocrinologia

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Os hormônios desempenham um papel crítico no desenvolvimento e na expressão de uma ampla gama de comportamentos. Um aspecto da influência dos hormônios no comportamento é a sua potencial contribuição para a fisiopatologia dos transtornos psiquiátricos e para o mecanismo de ação dos psicotrópicos. De todos os eixos endócrinos, o eixo hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal (HHS) tem sido o mais amplamente estudado. São objetivos deste capítulo analisar as evidências relativas à correlação entre doenças afetivas e alterações psiconeuroendócrinas no estresse; discutir as teorias que dizem respeito à prevenção ou à reversão das consequências do impacto do estresse no eixo HHS em doenças como a depressão; e explorar a importância dos novos conceitos apresentados para as diretrizes de tratamento.

Um problema-chave do diagnóstico em psiquiatria é o fato de que os elaborados sistemas de classificação hoje existentes baseiam-se somente em descrições subjetivas dos sintomas. Tal fenomenologia detalhada inclui a descrição de diversos subtipos clínicos, no entanto não há uma característica biológica que diferencie um subtipo do outro. Uma variedade de transtornos pode exibir sintomas clínicos semelhantes, e um mesmo transtorno pode se ­manifestar de forma distinta em pessoas diferentes. Assim, uma abordagem de pesquisa que descreve achados neurobiológicos confiáveis, com base na síndrome psicopatológica, seria mais ­consistente do que um sistema não etiológico de classifica­ção. Um futuro sistema de critérios diagnósti­cos, em que a etiologia e a fisiopatologia sejam essenciais na tomada de decisões diagnósticas, colocaria a psiquiatria mais próxima de outras especialidades médicas. A relação entre o estresse e a enfermidade é um forte exemplo de uma área de estudo que pode ser mais bem compreendida a partir de uma perspectiva integradora: o potencial de um enfoque integrador para contribuir com as melhorias.1 Essa abordagem mostra, muito claramente e sem qualquer dúvida, que as causas, o desenvolvimen­to e o prognóstico dos transtornos são determinados pela interação de fatores psicológicos, sociais e culturais com a bioquímica e a fisiologia.

Esse sistema está baseado nos estudos atuais, que relataram que o cérebro e seus processos cognitivos funcionam em extraordinária sincronia. Consequentemente, hoje é possível aceitar o complexo cérebro-corpo-mente quando se sabe que os três sistemas – neurológico, endócrino e imune – têm receptores em células críticas que podem receber informação (via moléculas mensageiras) de cada um dos outros sistemas. O quarto sistema, a mente (nossos pensamentos e sentimentos e nossas crenças e esperanças), é a parte do funcionamento do cérebro que integra o paradigma da psiconeuroimunoendocrinologia. A interação corpo-mente, um funcionamento explícito do cérebro, é crítica para a manutenção da homeostase e do bem-estar.1 Hoje, é amplamente aceito que o estresse psicológico pode alterar o estado homeostático interno de um indivíduo. Durante o estresse agudo, ocorrem respostas fisiológicas adaptativas, inclusive o aumento da secreção adrenocortical de hormônios, principalmente de cortisol. Sempre que existe uma interrupção aguda desse equilíbrio, a enfermidade pode sobrevir. Merecem especial interesse e, neste capítulo, serão revisados:

  • o estresse psicológico (estresse na mente)
  • o estresse precoce
  • as interações dos sistemas neurológico, endócrino e imune

Os ambientes sociais e físicos têm enorme impacto na fisiologia e no comportamento do indivíduo e influenciam o processo de adaptação, ou “alostase”.2 Ao mesmo tempo, as experiências alteram o cérebro e os pensamentos, ou seja, modificam a neurobiologia. Tal ação do cérebro é a primeira linha de defesa do corpo contra a doença, contra o envelhecimento e a favor da saúde e do bem-estar. Os genes, o estresse precoce, as experiências na vida adulta, o estilo de vida e os eventos estressantes contribuem para a forma como o corpo se adapta a um meio ambiente mutável, e todos esses fatores ajudam a determinar o custo para o corpo – ou a “carga alostática”.2 A interação entre o comportamento, a neurobiologia e o sistema endócrino, que pode resultar em imunossupressão, é a descoberta mais interessante na medicina atual, e suas implicações são importantes para a prevenção e o tratamento das doenças somáticas.3

Eixo endócrino

Os hormônios desempenham um papel crítico no desenvolvimento e na expressão de uma ampla gama de comportamentos. Um aspecto da influência dos hormônios no comportamento é a sua potencial contribuição para a ­fisiopatologia dos transtornos psiquiátricos e para o mecanismo de ação dos psicotrópicos, particularmente no transtorno depressivo maior (TDM). De todos os eixos endócrinos, o HHS tem sido o mais amplamente estudado. Esse eixo exerce um papel fundamental na resposta aos estímulos externos e internos, incluindo os estressores psicológicos. Anormalidades na função do eixo HHS têm sido observadas em pessoas que experimentam transtornos psiquiátricos. Além disso, é amplamente conhecida a ação ­importante do estresse como precipitante de episódios de transtornos psiquiátricos em indivíduos predispostos. As anormalidades na função do eixo HHS estão relacionadas às mudanças na capaci­dade dos glicocorticoides (GCs) circulantes em exercer seu feedback negativo na secreção dos hormônios do eixo HHS por meio da ligação aos receptores de mineralocorticoides (RMs) e aos receptores glicocorticoides (RGs) nos tecidos do eixo,4 conforme mostra a Figura 1.


[ Figura 1 ]
Diagrama esquemático do eixo HHS; regulação e feedback negativo (-) do cortisol por via dos RGs.
Fonte: Juruena e colaboradores.5

Regulação do eixo hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal

A atividade do eixo HHS é governada pela secreção de hormônio liberador de corticotrofina (HLC) e de arginina vasopressina (AVP) pelo hipotálamo, os quais ativam a secreção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH, do inglês adrenocorticotropic hormone) pela hipófise, que, finalmente, estimula a secreção de GCs pelo córtex adrenal.2 Os GCs, então, interagem com seus receptores em diversos tecidos-alvo, inclusive o eixo HHS, em que são responsáveis pela inibição negativa por feedback da secreção do ACTH (pela hipófise) e do HLC (a partir do hipotálamo).5 Embora os GCs regulem a função de quase todos os tecidos do corpo, o efeito fisiológico mais conhecido deles é a regulação do metabolismo energético. Os efeitos anti-inflamatórios e imunossupressores dos GCs são evidentes em doses farmacológicas, ao passo que, fisiologica­mente, esses hormônios desempenham um importante papel regulatório no sistema imune6 (ver Figura 1). Vários fatores regulam a atividade do eixo HHS. Há evidência de inervação direta catecolaminérgica, serotonérgica e dopaminérgica nos neurônios produtores de HLC no hipotálamo; esses e outros neurotransmissores parecem influenciar a liberação de HLC. Por exemplo, a serotonina (5-HT) exerce influência estimuladora no HLC por meio dos subtipos de receptores 5-HT1A, 5-HT1B, 5-HT1C e 5-HT2. A noradrenalina (NA), também conhecida como norepinefrina (NE), tem efeito mais variável e é estimulatória em doses baixas (via receptores alfa-1) e inibitória em doses altas (via receptores beta).7

Anormalidades do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal na depressão

A hiperatividade do eixo HHS no TDM é um dos achados mais consistentes em psiquiatria. Um percentual significativo de pacientes com TDM apresenta:

  • concentrações aumentadas de cortisol (o GC endógeno em humanos):
    • no plasma
    • na urina
    • no líquido cerebrospinal (LCS)
  • resposta exagerada do cortisol ao ACTH
  • aumento das glândulas hipófise e ­suprarrenal

Nos últimos anos, foram publicados muitos estudos sobre o eixo HHS em pacientes deprimidos. Esses estudos indicam que há uma nova perspectiva para os antigos achados que relacionavam a hipercortisolemia à depressão. O conhecimento sobre essa alteração está convergindo em algumas direções, levando os profissionais da área neuropsiquiátrica a acreditar que existe um endofenótipo de vulnerabilidade para a doença depressiva, uma vez que a hipercortisolemia está, aparentemente, ligada a alguns casos específicos de depressão e depende:8

  • do tipo e da gravidade da doença
  • do genótipo
  • do histórico do trauma durante a infância
  • de resiliência, provavelmente

A hipertrofia da glândula suprarrenal tem sido encontrada em pacientes deprimidos. A observação de hipertrofia da suprarrenal em pacientes deprimidos provavelmente explica por que a resposta do cortisol ao HLC é similar em indivíduos deprimidos e em controles, já que a glândula suprarrenal aumentada é capaz de compensar a resposta reduzida de ACTH ao HLC, geralmente observada em pacientes com depressão.8

Nos pacientes deprimidos, observou-se volume hipofisário aumentado, o que pode ser considerado um marcador da ativação excessiva do eixo HHS. Em um recente estudo, o primeiro episódio de psicose foi associado ao volume aumentado da hipófise, o que sugere que isso se deve à hiperativação do eixo HHS. Um menor volume hipofisário, em indivíduos com psicose estabelecida, também pode ser consequência de episódios repetidos de hiperatividade do eixo HHS.3,5,8

Em geral, as alterações no eixo HHS aparecem em pacientes com depressão crônica e episódios depressivos graves. Além disso, essas alterações parecem ser estado-dependentes, e a tendência é que se resolvam com a resolução da síndrome depressiva.9

Os achados provenientes de diversas linhas de pesquisa têm fornecido evidências de que, durante a depressão, a disfunção de estruturas límbicas, inclusive o hipotálamo e o hipocampo, resulta na hipersecreção de HLC e AVP, o que, por sua vez, induz à ativação hipófise-suprarrenal. Além disso, as concentrações de HLC no LCS estão aumentadas em pacientes deprimidos não medicados. Em vítimas de suicídio, foi encontrado um menor número de receptores de HLC no córtex frontal. Vários estudos mostraram evidências de que o HLC pode desempenhar um papel nos sinais e sintomas comportamentais da depressão, tais como:10

  • libido diminuída
  • apetite diminuído
  • alterações psicomotoras
  • distúrbios do sono

Histórico

Os primeiros estudos sobre hipercortisolemia em pacientes com depressão foram publicados no fim dos anos de 1960. Nessa época, Carroll e colaboradores11 verificaram que pacientes gravemente deprimidos exibiam não supressão no teste de supressão de dexametasona (TSD).
O TSD demonstrou que muitos dos pacientes com vários transtornos do humor tinham níveis elevados de cortisol, escapando, dessa forma, do efeito inibitório da dexametasona (DEX). Infelizmente, a DEX tem características farmacodinâmicas e farmacocinéticas que são ­muito distintas daquelas do cortisol. Essas características, como a baixa sensibilidade do TSD (40 a 50%) – ou seja, a baixa capacidade de detectar pacientes com TDM –, limitaram fortemente o uso desse teste na rotina clínica e na prática de pesquisa.3 O uso do TSD resultou em achados conflitantes que não foram amplamente replicados, e os estudos sobre a função do eixo HHS na depressão foram deixados de lado por algum tempo. Além da limitação desse teste, muitos fatores operam como confundidores, que enviesam os resultados capazes de medir a função do eixo HHS. Aproximadamente 10 anos após o desenvolvimento do TSD, Holsboer e Barden9 desenvolveram um teste da função neuroendócrina mais sensível para detectar o desequilíbrio do eixo HHS. O teste, que combina o TSD e o teste de estimulação do HLC, é chamado de teste de desafio DEX/HLC. Ele envolve a administração oral de uma dose única de 1,5 mg de DEX às 23 horas, seguida de um bolo intravenoso de 100 µg de HLC às 3 horas do dia seguinte. Desde então, Holsboer e colaboradores9 têm ­publicado resultados interessantes sobre hipercortisolemia e depressão. Recentemente, Watson e colaboradores12 examinaram se o teste DEX/HLC revela distúrbios sutis do eixo HHS não detectados pelo TSD em pacientes com transtornos do humor e controles. Os autores encontraram estreita correlação entre as respostas de cortisol nos dois testes e o diagnóstico de depressão, conforme segue:9

  • DEX/HLC:
    • sensibilidade de 61,9%
    • especificidade de 71,4%
  • TSD:
    • sensibilidade de 66,6%
    • especificidade de 47,6%

Os dois testes medem a mesma patologia, mas o DEX/HLC apresenta melhor utilidade diagnóstica em comparação ao TSD. Zobel e colaboradores13 descreveram um conjunto de pacientes que se submeteram ao teste DEX/HLC em dois momentos diferentes: após iniciar o primeiro tratamento antidepressivo e alguns dias antes da alta. Os autores verificaram que:13

  • Pacientes que mostraram aumento nos níveis de cortisol após o teste DEX/HLC (entre a admissão e a alta) tenderam a recair durante o período de acompanhamento.
  • Pacientes que mostraram diminuição nos níveis de cortisol no teste DEX/HLC tenderam a permanecer clinicamente estáveis no período de acompanhamento.

Nos últimos anos, foi desenvolvido um ­teste de supressão que utiliza outro GC sintético, a pred­nisolona, com maior afinidade pelo RM.14
Os GCs medeiam suas ações, inclusive a regulação do eixo HHS, por meio dos subtipos de receptores de corticosteroide intracelular RM (tipo I) e RG (tipo II), conforme apresentado na Figura 1. Diferentemente do RM, o RG tem alta afinidade pela DEX e afinidade mais baixa pelos corticosteroides endógenos. No entanto, a ­maioria dos estudos nessa área examinou o RG. Os primeiros resultados com o teste de prednisolona em pacientes deprimidos parecem confirmar a ideia de que o feedback negativo mediado pelo RM sofre alterações nos pacientes deprimidos.14,15 Ainda que diferentes testes tenham sido utilizados e que resultados conflitantes tenham sido publicados, existem alguns resultados convergentes no caso específico da depressão.

Fatores que se associam a um endofenótipo vulnerável à depressão

Hipercortisolemia. Frequentemente, ocorre em pacientes com depressão grave, melancólicos, psicóticos ou não. Está vinculada a:16

  • presença de um polimorfismo específico na região promotora do gene do transportador de 5-HT
  • histórico de abuso ou abandono na infância
  • outras experiências traumáticas (como a per­da de um genitor na infância)
  • temperamento que leve a alterações na resposta ao estresse

Hipoativação do sistema do estresse (mais do que uma ativação contínua). A liberação reduzida cronicamente de HLC pode resultar em:

  • hiporresponsividade patológica
  • feedback negativo aumentado do eixo HHS

Ainda que os mecanismos pelos quais o HLC extra-hipotalâmico mostra-se elevado na depressão não tenham sido compreendidos, os níveis elevados de HLC no hipotálamo são relacionados à alteração de inibição por feedback pelos GCs endógenos. Os dados que confirmam que a inibição por feedback – mediada por GCs – encontra-se deficiente no TDM provêm de vários estudos que demonstram não haver supressão da secreção de cortisol. Esses estudos foram complementados por muitos testes da função neuroendócrina, os quais examinaram a supressão de ACTH e de corticosteroides ­pela DEX. O TSD revelou que uma alta proporção de pacientes com diferentes transtornos do humor tem níveis de cortisol elevados, escapando, dessa forma, do efeito supressor da DEX. Depois que o HLC foi descoberto e caracterizado, os estudos iniciais – que empregavam HLC ovino ou humano em indivíduos deprimidos – demonstraram que a resposta do ACTH, após injeção desse neuropeptídeo, encontrava-se ­diminuída, sugerindo que os receptores de HLC estavam dessensibilizados, devido à ­hipossensibilização homóloga pelo HLC hipersecretado. O ­teste da função neuroendócrina mais sensível para detectar a desregulação do eixo HHS é o DEX/HLC. De fato, a sensibilidade desse teste é maior que 80%, dependendo da idade e do sexo do paciente.4,8

Enquanto a resposta do ACTH, após estímulo pelo HLC, está reduzida em indivíduos deprimidos, o tratamento prévio com DEX produz o efeito oposto e, paradoxalmente, aumenta a secreção de ACTH após HLC. De forma semelhante, a secreção de cortisol induzida pelo HLC é muito maior em pacientes que foram tratados previamente com DEX do que naqueles não tratados. Devido a sua baixa ligação à globulina ligadora de corticosteroide (CBG, do inglês corticosteroid-binding globulin) e a seu menor acesso ao cérebro, a DEX atua, primariamente, na hipófise para suprimir o ACTH. A diminuição subsequente de cortisol e a incapacidade da DEX em compensar níveis mais baixos de cortisol no tecido nervoso criam uma situação que é detectada pelos elementos reguladores centrais do sistema HHS como adrenalectomia parcial e transitória. Em resposta a essa situação, a secreção de neuropeptídeos centrais é aumentada, ativando a secreção do ACTH (em especial o HLC e a AVP). Quando a AVP é infundida em baixa frequência, em controles tratados previamente com DEX, a infusão concomitante de HLC induz a uma resposta do ACTH e do cortisol que é similar ao perfil de secreção hormonal dos indivíduos depressivos que recebem o teste combinado DEX/HLC sem tratamento simultâneo com AVP.4,8

Há, no entanto, algumas limitações a esse teste. Em particular, a farmacodinâmica e a farmacocinética da DEX diferem notavelmente das do cortisol. A DEX, comparada ao cortisol, acopla-se somente ao RG (não ao RM) in vivo, não se acopla à CBG e tem meia-vida muito maior.

Em resposta a essas preocupações, recentemente foi desenvolvido um teste supressor do eixo HHS, que utiliza prednisolona, que é similar ao GC.14 A prednisolona é um GC sintético semelhante ao cortisol em sua farmacodinâmica (liga-se tanto ao RM e ao RG quanto à CBG) e sua farmacocinética (sua meia-vida é similar à do cortisol).

Propõe-se que a prednisolona em dosagem de 5 mg (que acarreta a supressão parcial do eixo HHS), com a avaliação do cortisol salivar, pode ser utilizada para investigar tanto o ­feedback negativo, mediado pelo GC deficiente, quanto o intensificado, em amostras maiores de pacientes com transtornos psiquiátricos.14,15

Acredita-se que a hiperatividade do eixo HHS, na depressão maior, seja secundária à hipersecreção de HLC. O HLC apresenta efeitos comportamentais similares em animais e em pacientes deprimidos, inclusive alterações na atividade, no apetite e no sono. Além disso, pacientes deprimidos exibem concentrações mais elevadas de HLC no LCS, assim como de HLC no ácido ribonucleico mensageiro (mRNA) e de proteína no núcleo paraventricular (NPV) do hipotálamo (amostras post-mortem), e resposta reduzida de ACTH ao estímulo com HLC.14,15

Os fatores que dão sustentação à ideia de que o HLC é o neuropeptídeo-chave responsável pelas alterações do eixo HHS na depressão são:5

  • os resultados de resposta diminuída do ACTH
    ao HLC
  • o menor número de sítios receptores de HLC no córtex frontal de pacientes com depressão que cometeram suicídio
  • o maior número de neurônios produtores de HLC no NPV hipotalâmico de pacientes com depressão
  • o achado de que as concentrações de HLC no líquido cerebrospinal diminuem durante o tratamento de longo prazo com fluoxetina ou amitriptilina

Os estudos realizados em animais e humanos sugerem que o estresse, nas suas fases iniciais de desenvolvimento, pode induzir as alterações persistentes na capacidade do eixo HHS de responder ao estresse na vida adulta e que esse mecanismo pode levar a maior suscetibilidade à depressão.

A hiperatividade persistente do eixo HHS também tem sido associada a índices mais altos de recaída. Os estudos conduzidos em ­pacientes que estavam recebendo uma gama de antidepressivos mostraram que aqueles que não tiveram normalização no nível do cortisol, após tratamento com DEX, tenderam a apresentar pior desfecho em termos de re-hospitalização, suicídio e recorrência de depressão.

Dois estudos descreveram uma pesquisa prospectiva que analisou a relação entre os resultados do teste DEX/HLC e o desfecho ­clínico. Especificamente, Zobel e colaboradores13 descreverem uma coorte de pacientes que receberam o teste DEX/HLC em duas ocasiões distintas: na primeira semana após a admissão (ou após começarem o primeiro tratamento com antidepressivos) e alguns dias antes da alta. Os pacientes foram seguidos por seis meses após a alta. O estudo demonstrou o seguinte resultado:

  • Os pacientes que tiveram aumento nos níveis de cortisol após o teste DEX/HLC (entre a admissão e a alta) tenderam a recair durante o período de seguimento.
  • Os pacientes que mostraram diminuição nos níveis de cortisol após o teste DEX/HLC tenderam a permanecer clinicamente estáveis no período de seguimento.

Esses estudos sugerem que a avaliação do eixo HHS, durante o tratamento antidepressivo, pode ser útil para identificar os pacientes com maior risco de recaída.9,10,13

Uma ampla variedade de estressores ­ativa o eixo HHS comprovadamente, e os GCs são o produto final dessa ativação. Por essa razão, tais hormônios têm sido mais comumente vistos como os agents provocateurs (agentes ­provocadores) ou, em casos extremos, como a corporificação da patologia induzida pelo estresse. De fato, tem-se sugerido que a prolongada ­superprodução de GCs – seja como resultado de um estresse em curso, seja como de predisposição genética para a hiperatividade do eixo HHS – danifica as estruturas cerebrais (especialmente o ­hipocampo), que são essenciais para o controle desse eixo.

Existe a hipótese de que esse dano, por sua vez, leve a um circuito de pró-alimentação (feedfor­ward), em que os estressores permanentes estimulam a superprodução de GCs indefinidamente (a “hipótese da cascata de GCs”). Devido à possibilidade de as altas concentrações de GCs alterarem o funcionamento celular, podendo levar a um grande número de doenças, considera-se que essa superprodução de hormônios contribui diretamente para muitas das sequelas comportamentais e psicológicas associadas ao estresse crônico.2,8

Apesar da popularidade da hipótese da cascata, cada vez mais os dados fornecem evidências de que, além do excesso de GCs, sua sinalização insuficiente pode desempenhar um papel significativo no desenvolvimento e na expressão da patologia dos transtornos relacionados ao estresse.

Ainda que não ocorram conjuntamente, tanto o hipocortisolismo como a ­responsividade reduzida aos GCs (como determinado por TSD) foram encontrados de forma confiável. Os transtornos psiquiátricos relacionados ao estresse também foram associados à inflamação/ativação do sistema imune, à elevação do tônus do sistema nervoso central (SNC) e à hipersecreção de HLC, que são todos consistentes com regulação insuficiente de hiper-responsividade ao estresse mediada por GC. Os antidepressivos, fundamentais no tratamento de transtornos relacionados ao estresse, foram regularmente associados à intensificação da sinalização por GCs.

Entende-se por sinalização insuficiente por GCs qualquer estado em que a capacidade de tal sinalização seja inadequada para controlar sistemas responsivos ao estresse relevantes, seja como resultado de diminuição da biodisponibilidade hormonal (p. ex., hipocortisolismo), seja como resultado de responsividade atenuada aos GCs (p. ex., secundária à redução da sensibilidade do RG).

Assim definida, a sinalização insuficiente pelos GCs não implica qualquer mecanismo específico ou deficiência absoluta, mas, ao contrário, tem seu foco no ponto final da atividade GC. A pergunta fundamental é se a mensagem do GC está chegando de forma adequada ao ambiente (externo e interno) em que um organismo se encontra. Mesmo no caso de hipersecreção de GCs, pode existir insuficiência desses hormônios se a sensibilidade reduzida ao GC, em tecidos-alvo relevantes, sobrepujar o excesso de hormônio circulante.17,18

Os estudos neuroendócrinos recentes fornecem a evidência de que há sinalização de GC insuficiente em transtornos neuropsiquiátricos relacionados ao estresse. Entretanto, a alteração da regulação por feedback das principais respostas ao estresse, especialmente da inflamação/ativação imunológica, pode contribuir para a patologia relacionada ao estresse, incluindo alterações no comportamento, na sensibilidade à insulina, no metabolismo ósseo e nas respostas de imunidade adquirida.

Desde uma perspectiva evolutiva, a sinalização de GC reduzida – alcançada no nível do hormônio ou de seu receptor – pode impulsionar a prontidão imune e aumentar a reatividade. A ênfase na sinalização de GC insuficiente, em patologias relacionadas ao estresse, encoraja o desenvolvimento de estratégias terapêuticas para intensificar as vias de sinalização de GC.4,17

Receptor glicocorticoide

Os hormônios esteroides (p. ex., GC, ­estrógeno, testosterona e mineralocorticoide) são ­pequenas moléculas lipossolúveis que se difundem pelas membranas celulares. Diferentemente dos receptores dos hormônios proteicos, que estão localizados na membrana celular, os receptores desses ligantes estão localizados no citoplasma. Em resposta ao acoplamento ao ligante, os receptores de hormônios esteroides translocam-se para o núcleo, onde regulam a expressão de certos genes por meio da ligação a elementos de resposta hormonal (ERHs) específicos em suas regiões regulatórias.4,8

O RM tem alta afinidade pelos corticosteroides endógenos, e considera-se que desempenhe um papel na regulação das flutuações circadianas desses hormônios, especialmente na secreção de ACTH durante a queda progressiva diurna na secreção do cortisol. Kloet e colaboradores19 esclareceram que a ativação do RG é necessária para a regulação por feedback do eixo HHS quando os níveis de GCs estão altos (resposta ao estresse e pico circadiano), mas mostram que o RM também desempenha um papel importante na modulação da regulação dependente de RG.19

Como mencionado anteriormente, de acordo com o modelo de “tráfego núcleo-citoplasmático” da ação do RG (Figura 2), o RG – em sua forma “inativa” – essencialmente reside no citoplasma em associação com um complexo multimétrico de proteínas chaperonas moleculares, incluindo diversas proteínas de choque térmico (HSP56, HSP90). Os GCs (cortisol em humanos, hidrocortisona em roedores) ou os GCs sintéticos (DEX) atuam como ligantes de RG.


[ Figura 2 ]
Modelo de ativação de RG.
Fonte: Juruena e colaboradores.4

Após ser acoplado ao esteroide, o RG sofre alteração de conformação (ativação), dissocia-se do complexo de proteínas chaperonas moleculares e transloca-se do citoplasma para o núcleo, onde regula a transcrição gênica, acoplando-se aos ERHs no ácido desoxirribonucleico (DNA) ou interagindo com outros ­fatores de transcrição. Então, o RG se recicla para o citoplasma e não pode acoplar-se novamente ao ligante até que a associação com as proteínas chaperonas moleculares esteja completa. Subsequentemente, funciona como um fator de transcrição regulado pelo ligante por meio de acoplamento aos elementos de resposta aos GCs (ERGs).4,8

Os ERGs podem designar uma regulação tanto positiva como negativa aos genes aos quais estão acoplados. O RG ativado não pode se acoplar novamente ao ligante, já que, para isso, é necessária a associação com o complexo das proteínas chaperonas moleculares para manter o receptor em um estado conformacional receptivo ao hormônio.4,8

Os RGs têm baixa afinidade, mas alta capacidade para cortisol, e são muito responsivos a alterações nas concentrações de cortisol. Enquanto se considera que os RMs possam estar envolvidos na atividade inibitória tônica no eixo HHS, os RGs parecem “desligar” a produção de cortisol em períodos de estresse.19

Vários grupos de pesquisa sugeriram que a hiper-reatividade do eixo HHS na depressão pode estar associada a uma anormalidade do RG no nível límbico-hipocampal. Essa anormalidade resulta em falta de GC ou resistência a ele. Vários achados em depressão são consistentes com uma anormalidade do RG. Mais notável é o fato de que os pacientes com depressão melancólica não exibem a maioria dos sintomas físicos do excesso de corticosteroide, apesar da presença frequente de hipercortisolismo, sugerindo que os RGs periféricos possam ser anormais ou insensíveis na depressão.7,19

Consistentemente com o fato de que o RG é mais importante na regulação do eixo HHS quando os níveis endógenos dos GCs estão elevados e de que os pacientes com TDM exibem feedback negativo prejudicado do eixo HHS no contexto de níveis elevados de cortisol circulante, vários estudos têm descrito uma função reduzida do RG em pacientes deprimidos (resistência do RG) e que os antidepressivos atuam revertendo essas supostas alterações do RG.9

Receptores de glicocorticoide nos subtipos de depressão

A hiperfunção do eixo HHS, caracterizada por hiperativação de HLC, feedback negativo reduzido e hipercortisolemia, é um achado constante nas pesquisas de TDM. Em geral, as anormalidades têm sido observadas em pacientes com transtorno unipolar (episódio único ou episódios recorrentes de TDM), mas também podem estar presentes em pacientes com transtorno bipolar – com episódios recorrentes de depressão maior e episódios de mania ou hipomania –, nas fases depressiva, maníaca e de remissão.5

Um estudo20 constatou que os transtornos de ansiedade ocorrem em aproximadamente 30% dos pacientes com TDM e concluiu que os pacientes deprimidos com transtorno de ansiedade comórbido apresentam prejuízo do ­feedback negativo do eixo HHS ainda maior do que o observado em pacientes deprimidos sem esse transtorno.

Nas últimas décadas, vários estudos relataram que a depressão maior psicótica (DMP) apresenta características únicas, inclusive diferenças neuroendócrinas em relação à depressão maior não psicótica (NDMP).21 Muitos estudos constatam hiperatividade do eixo HHS em pacientes com DMP, que está associada a níveis aumentados de cortisol durante as horas de repouso. A atividade aumentada de cortisol, particularmente modificando o ponto mais baixo da curva, está relacionada à gravidade da depressão e à interação de sintomas depressivos e psicóticos. Essa modificação sugere um defeito na ação do sistema temporizador circadiano e do eixo HHS, criando um ambiente hormonal similar ao que é encontrado na síndrome de Cushing inicial e um desequilíbrio na ativação dos RMs e RGs.21-24

Mecanismos moleculares de resistência dos receptores de glicocorticoides na depressão

Vários estudos avaliaram o RG em pacientes com TDM. Um estudo cerebral post-mortem encontrou:

  • expressão gênica de RG reduzida no lobo frontal e no hipocampo
  • expressão gênica de RG e RM reduzida no lobo frontal (não somente em pacientes com TDM, mas também em pacientes com esquizofrenia e transtorno bipolar)

Os estudos fornecem evidências sugestivas de que o eixo HHS pode estar anormal em alguns pacientes com transtorno bipolar e esquizofrenia e dão sustentação à visão de que a desregulação do eixo HHS pode ter um papel em diferentes transtornos psiquiátricos. Outro estu­do post-mortem não encontrou diferenças no RG mRNA, mas diminuição no RM mRNA, no hipocampo em vítimas de suicídio com história de depressão.4,25-27

O estresse crônico também tem sido associado à hiperativação do eixo HHS e à função alterada do RG. Um estudo avaliou o impacto dos GCs na função de células periféricas (função imune) – sabidamente inibidas pela ativação do RG – e, em particular, a conhecida capacidade da DEX de inibir a capacidade das células mononucleares sanguíneas periféricas de proliferarem em resposta a mitógenos policlonais.9,14 Evidências demonstram que os níveis de cortisol cronicamente elevados podem produzir um estado de resistência aos esteroides, habilitando os linfócitos a responder com menos intensidade aos GCs. Esses dados sugerem que as elevações crônicas no cortisol podem ser subjacentes à resistência dos RGs em humanos.9,14

Após a recuperação clínica, a hipercortisolemia tende a se resolver, e a sensibilidade dos linfócitos à DEX retorna aos níveis de ­controle. É tentador, no entanto, especular que a resistência aos antidepressivos nessa amostra de pacientes possa estar relacionada à resistência aos esteroides. Ainda que comumente ­agrupados, o hipercortisolismo e a resistência aos GCs não ocorrem necessariamente ao mesmo tempo e podem representar estados distintos de disfunção do eixo HHS ou, pelo menos, diferentes pontos ao longo de uma evolução da patologia do eixo HHS.9,13

Apesar de as informações aqui apresentadas fornecerem evidência sólida de que há resistência aos GCs no TDM, existem alguns dados que sugerem que a sensibilidade aos GCs, em pacientes deprimidos, permanece intacta ­pelo menos em alguns compartimentos do corpo. Especificamente, foi demonstrado que pacientes deprimidos exibem deposição de gordura intra-abdominal, que também é observada em condições médicas caracterizadas por hipercortisolemia (p. ex., síndrome de Cushing) e após o tratamento prolongado com GCs. Esses achados sugerem que os RGs intra-abdominais podem manter sua sensibilidade aos GCs, ao passo que outros tipos de tecidos/células são resistentes. Corroborando essa possibilidade, os estudos também mostram densidade mineral óssea diminuída em pacientes deprimidos, já que GCs elevados também têm sido associados à perda óssea.4,6

Como discutido anteriormente, os dados sobre RGs não são convincentes a favor da hiporregulação (downregulation) dos RGs secundária ao hipercortisolismo no TDM. No entanto, é concebível que o hipercortisolismo possa sobrecarregar a capacidade de reciclagem dos RGs, com consequente diminuição da capacidade da célula de responder à estimulação subsequente. Uma segunda possibilidade é a de que a função RG esteja alterada no TDM por meio de mecanismos independentes de ligação.3,5 Em síntese, vários mecanismos podem mediar a “resistência adquirida ao esteroide”.

Antidepressivos e o receptor de glicocorticoide

A hipótese de que os antidepressivos exerçam seus efeitos clínicos por meio da modulação direta do RG é um dos mais notáveis e inovadores modelos do mecanismo de ação dessa classe de fármacos.4

Os estudos em pacientes deprimidos, modelos animais e celulares demonstraram que os antidepressivos aumentam a expressão de RG, intensificam sua função e promovem sua translocação nuclear, o que está associado ao ­feedback negativo intensificado pelos GCs endógenos e, portanto, ao repouso reduzido e à atividade estimulada do eixo HHS. Esses efeitos, por sua vez, podem contribuir para a ação terapêutica dessa classe de fármacos. No entanto, a relação entre a estrutura química, os mecanismos farmacológicos e os efeitos conhecidos no RG ainda tem de ser mais esclarecida.4

A Figura 3 traz um diagrama que mostra a hipótese do mecanismo pelo qual os antidepressivos podem inibir os transportadores de esteroides da membrana na barreira hematoencefálica (BHE) e nos neurônios, de forma que mais cortisol possa ingressar no cérebro. Isso leva a ativação aumentada dos RGs do cérebro (e RM), feedback negativo aumentado no eixo HHS e, por fim, normalização da ­hiperatividade do eixo em pacientes deprimidos.


[ Figura 3 ]
Diagrama da hipótese do mecanismo pelo qual os antidepressivos podem inibir os transportadores de esteroides da membrana na barreira hematoencefálica (BHE) e nos neurônios.
Fonte: Juruena e colaboradores.5

Os trabalhos desenvolvidos no decorrer dos últimos anos têm tentado compreender os mecanismos pelos quais os antidepressivos regulam o RG. Esses estudos mostram que a incubação concomitante de desipramina e DEX leva a intensificação da transcrição gênica mediada por RG, ao passo que a incubação prévia com desipramina, seguida por DEX, acarreta redução da transcrição gênica mediada por RG.4,5

Alguns trabalhos mais recentes sugerem um possível papel dos transportadores de esteroides da membrana, tais como o complexo de resistência a múltiplos fármacos glicoproteína-P (MDR PGP), na regulação da função de RG durante o tratamento com antidepressivos e, possivelmente, na depressão. O MDR PGP, localizado na membrana apical das células endoteliais da barreira hematoencefálica, limita o ­acesso da DEX e do cortisol (mas não da hidrocortiso­na) ao cérebro humano, bem como às células periféricas, por exemplo, os linfócitos. Além disso, alguns antidepressivos são capazes de inibir o MDR PGP em células tumorais ao serem transportadas por esse complexo.4,5

Descobriu-se que três antidepressivos distin­tos (desipramina, clomipramina e paroxetina) aumentam a função do RG na presença de DEX e cortisol (que são excretados das células pelo MDR PGP), mas não de hidrocortisona (que não é excretada por esse transportador). Além disso, a clomipramina (o antidepressivo que produz a potencialização mais forte da transcrição ­gênica mediada por RG na presença de DEX ou cortisol) não tem efeito na presença de DEX após o bloqueio do transportador de esteroide com verapamil.5-9

A amitriptilina (mas não a fluoxetina) é transportada pelo MDR PGP. Já o tratamento prévio com nifedipina (outro inibidor de MDR PGP) evita a hipersensibilização de RG do hipocampo induzida pelo tratamento crônico com desipramina, amitriptilina ou eletroconvulsoterapia (ECT).4

A hipótese de que a modulação dos transportadores de esteroides da membrana é importante para os efeitos dos antidepressivos nos RGs é uma explicação potencial sobre como os medicamentos, química e farmacologicamente não relacionados, podem ter efeitos similares nos RGs. Os antidepressivos, assim como outros inibidores de transportadores de esteroides da membrana, parecem modular o MDR PGP, interagindo diretamente com os fosfolipídeos da membrana. Esse efeito não é mediado pelos receptores e está relacionado às propriedades físico-químicas dos medicamentos, ou seja, lipossolubilidade e carga elétrica.5,6

Parece plausível, portanto, que os efeitos dos antidepressivos estejam relacionados principalmente aos efeitos nos transportadores de esteroides da membrana, levando a aumento na função dos RGs. Propõe-se que os transportadores de esteroides de membrana, especialmente os que regulam o acesso dos GCs ao cérebro, como o MDR PGP, podem ser um alvo determinante para a ação antidepressiva. Em síntese, os efeitos dos GCs são mediados pelos RGs. Vários estudos têm demonstrado que a função do RG encontra-se prejudicada no TDM, o que resulta em feedback negativo reduzido, mediado por RG no eixo HHS, e em produção e secreção aumentadas de HLC em várias regiões cerebrais, possivelmente envolvidas na etiologia da depressão. O conceito da sinalização deficiente pelo RG é um mecanismo-chave na patogênese da depressão. Os dados indicam que os antidepressivos têm efeitos diretos no RG, conduzindo à função intensificada e à expressão aumentada desse receptor. O mecanismo de alteração desse receptor envolve, também, componentes não esteroides, tais como citocinas e neurotransmissores.5-10

Considerações finais

Poderia a disfunção do eixo HHS ser vista como uma causa biológica fundamental do TDM ou ela é um fenômeno secundário? Há várias indicações na literatura de que o eixo HHS desempenha um papel fundamental na predisposição para TDM e no início desse transtorno.

O eixo HHS é um grande componente do sistema do estresse que, tanto o agudo quanto o crônico, pode eliciar o TDM. É interessante que o estresse no início da vida leva a adaptações neurobiológicas persistentes que se assemelham aos achados na depressão. Há correlação entre o estresse, o eixo HHS (responsável pela resposta ao estresse) e o desenvolvimento da depressão.

O prejuízo do feedback do eixo HHS, observado em pacientes com depressão, também está presente em indivíduos saudáveis que apresentam risco por terem um familiar de primeiro grau com um transtorno do humor. Ademais, esse distúrbio mostrou-se estável em um período de quatro anos. Esses dados sugerem que alguns indivíduos têm uma vulnerabilidade geneticamente determinada para desenvolver hiperativação crônica do eixo HHS e, possivelmente, depressão melancólica. Existe, também, um elo entre a genética, a função do eixo HHS e a vulnerabilidade à depressão.

Essas observações apresentadas são sugestivas de um papel etiológico do eixo HHS no TDM. Todavia, é importante ter claro que a depressão maior é um transtorno complexo e heterogêneo.

Alguns quadros além da depressão melancólica estão associados a altos índices de hiperatividade do eixo HHS, tais como:4,5

  • depressão psicótica
  • anorexia nervosa, com ou sem desnutrição
  • transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)
  • transtorno de pânico
  • transtorno de ansiedade
  • alcoolismo ativo crônico
  • abstinência de álcool e narcóticos
  • diabetes mal controlado
  • hipertireoidismo
  • síndrome de Cushing
  • insônia
  • anorexia nervosa
  • exercício intenso
  • desnutrição
  • abuso sexual e físico

Outro grupo de doenças é caracterizado pela hipoativação do sistema de estresse, em vez de ativação permanente, na qual a secreção reduzida cronicamente de HLC pode resultar em hiporreatividade patológica e feedback negativo intensificado do eixo HHS. Entram nessa categoria os pacientes com:

  • transtorno de estresse pós-traumático (TEPT)
  • depressão atípica/sazonal
  • transtorno bipolar
  • síndrome da fadiga crônica
  • fibromialgia
  • hipotireoidismo
  • abstinência de nicotina
  • artrite reumatoide
  • alergias
  • asma

A hipótese de que os antidepressivos exerçam seus efeitos clínicos por meio da modulação direta dos hormônios GCs e de seus receptores é um dos mais impactantes e inovadores modelos dos mecanismos de ação dessa importante classe de fármacos.5 O eixo HHS é um dos sistemas mais importantes a ser estudado para elucidar a etiologia das doenças mentais, mas muitos outros fatores também precisam receber atenção, como a genética, a relação do indivíduo com o ambiente, o estresse precoce e a resiliência de algumas pessoas, que pode explicar diferentes tipos de resposta aos mesmos eventos estressantes.

Referências

Conteúdo originalmente publicado em: QUEVEDO, J. ; IZQUIERDO, I. (Orgs.). Neurobiologia dos transtornos psiquiátricos. Porto Alegre: Artmed, 2020. 388 p.

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Autores

Mario Francisco P. Juruena