PARTE [1] O funcionamento do sistema nervoso centralCAPÍTULO [9] |
“Neuroimagem” é um termo amplo que diz respeito a um conjunto de técnicas com o objetivo de realizar imagem do sistema nervoso central (SNC) in vivo. Entre essas técnicas, estão incluídas a tomografia computadorizada (TC), a tomografia por emissão de pósitrons (PET), a tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT, do inglês single photon emission computed tomography) e a imagem por ressonância magnética (IRM). Essas técnicas vêm sendo empregadas desde meados da década de 1970 para a pesquisa de mecanismos subjacentes aos transtornos psiquiátricos. No entanto, seu uso clínico permanece restrito ao diagnóstico diferencial e à exclusão de quadros neurológicos. Neste capítulo, vamos fazer uma revisão ampla sobre a aplicação desses métodos em psiquiatria. A literatura científica de neuroimagem aplicada à psiquiatria é vasta e ainda apresenta muitas técnicas e conceitos em evolução. Por se tratar do método mais utilizado para o estudo da estrutura e da função do cérebro relacionadas aos diferentes diagnósticos psiquiátricos, vamos focar principalmente os estudos de ressonância magnética.
Radiografia e tomografia computadorizada
Os métodos de imagem in vivo na medicina têm como objetivo empregar técnicas que se baseiam na interação entre diferentes partes do corpo e uma fonte de energia para produzir imagens que permitam a avaliação de partes internas do corpo que não seriam disponíveis com a inspeção visual. O primeiro método foi a radiografia por raios X. Os raios X foram descobertos por Wilhelm Conrad Rontgen em 1895. O princípio para esse método de aquisição de imagem permanece relativamente inalterado desde então. Consiste em posicionar um objeto (ou parte do corpo) entre um emissor de raios X e um detector. Tecidos com alta absorção (p. ex., os ossos) dos raios X aparecem como branco, enquanto regiões com baixa absorção (como o ar dos pulmões) aparecem em tons escuros.
Um dos primeiros métodos de neuroimagem utilizados em psiquiatria foi a pneumoencefalografia. Esse método consistia na punção lombar para a substituição do líquido cerebrospinal (LCS) por um gás (normalmente ar), com o objetivo de realçar o contorno cerebral e os ventrículos. A pneumoencefalografia tem várias limitações técnicas e metodológicas.
Um estudo inicial de 19271 utilizou a pneumoencefalografia para estudar as diferenças entre pacientes com esquizofrenia e controles e descreveu alta prevalência de anormalidade cortical e subcortical no grupo de pacientes. Esse estudo foi seguido por outros, principalmente no Japão e na Alemanha.2 Entre os achados mais consistentes, estavam o aparente aumento de volume do ventrículo em pacientes com esquizofrenia e a atrofia cortical.2 Tais estudos baseavam-se em observações feitas pela inspeção visual das imagens que não tinham resolução para a distinção entre diferentes regiões cerebrais; além disso, tratava-se de um método invasivo com potenciais riscos aos sujeitos submetidos ao exame.2 Por isso, a inclusão de um grupo controle nos estudos era eticamente questionável. Alguns estudos não utilizavam um grupo de indivíduos saudáveis, enquanto outros comparavam o exame de pacientes com aquele de sujeitos que foram submetidos ao mesmo exame por outro motivo, mas não tinham alterações observáveis. No entanto, cabe ressaltar que tais estudos foram conduzidos em uma época na qual a esquizofrenia e outros transtornos mentais não eram predominantemente vistos como tendo um substrato biológico no cérebro.
Tomografia computadorizada
A TC (também representada pela sigla TAC em português ou CT ou CAT em inglês) foi desenvolvida na década de 1970 por Hounsfield.3 Essa técnica é capaz de reconstruir uma imagem em cortes tomográficos bidimensionais (2D) ou tridimensionais (3D) das estruturas do corpo humano. De maneira simplificada, consiste em um aparelho capaz de mover o emissor e o receptor de raios X de maneira axial ao longo do corpo. Em outras maneiras, a imagem é uma reconstrução feita pelo computador de múltiplas transmissões de raio x. Os aparelhos modernos são capazes de realizar imagens milimétricas em curto intervalo de tempo e com pouca dose de radiação.
Seu uso em pesquisa iniciou-se pouco após a descrição do método. O primeiro estudo em esquizofrenia é de 19764 e demonstrava aumento dos ventrículos em relação ao volume cerebral no grupo de pacientes. Esse achado foi replicado em outros estudos, fortalecendo as teorias que relacionavam a esquizofrenia a alterações cerebrais.2 A TC também foi utilizada em pesquisa de outros transtornos, por exemplo, os transtornos do humor.5 O desenvolvimento e a popularização da ressonância nuclear magnética (RNM) acabaram por suplantar o uso da TC em pesquisa. O uso da TC permanece importante na clínica, principalmente por esta ser mais rápida e mais acessível do que a RNM.
Ressonância nuclear magnética
A RNM foi introduzida como método de imagem nos anos de 1970. Ela utiliza o fenômeno da ressonância magnética (RM) exibida por núcleos atômicos com número ímpar de prótons e/ou nêutrons. Esses núcleos, de forma simplificada, podem ser entendidos como pequenos ímãs. Eles absorvem e reemitem energia eletromagnética em uma frequência que é proporcional à força do campo eletromagnético. Por exemplo, o hidrogênio (1H) é o núcleo mais usado para produzir IRM. Em um campo magnético de 1,5 tesla (T), essa frequência é de aproximadamente 64 mega-hertz (MHz). A magnetização pode ser deslocada ao se aplicar um sinal de radiofrequência em outra direção (Figuras 1 e 2).
O deslocamento do campo eletromagnético pode, então, ser detectado por uma bobina receptora. O sinal recebido é influenciado pelo tempo para que o spin dos prótons seja realinhado ao campo eletromagnético (também chamado de tempo de relaxamento/ou relaxação longitudinal – T1; Figura 2).
[ Figura 1 ]
(a) Desenho esquemático de um próton gerando um pequeno campo magnético. (b) Em uma coleção, os prótons estão alinhados de maneira aleatória. (c) Na presença de um campo magnético Bo, eles ficam orientados ao campo, gerando um pequeno momento magnético (Mo). (d) Com precessão ao redor da direção de Bo e na frequência de Larmor.
[ Figura 2 ]
Ilustração do tempo T1. Um sinal eletromagnético “inverte” os prótons (no caso de um pulso em 180 graus). Quando retirado, os prótons voltam para seu alinhamento original.
Além desse fenômeno, os spins influenciam o campo eletromagnético de outros spins ao redor deles. Quando o sinal de radiofrequência é interrompido, os spins perdem coerência com relação aos outros spins. Esse fenômeno é conhecido como T2 ou tempo de relaxamento transverso (Figura 3) e é influenciado também por fatores locais e diferenças no campo magnético, levando a um tempo ainda mais curto, chamado de T2*.
[ Figura 3 ]
Desenho esquemático de decaimento T2. Ao aplicar um pulso (nesse exemplo de 90º), os momentos dos prótons se alinham no plano transverso. Quando esse pulso é retirado, os prótons começam a perder a coerência de fase. Assim a magnetização transversa é perdida.
As medidas de T1 e T2 são influenciadas pelo ambiente molecular dos prótons, logo pelo tipo de tecido subjacente. Diferentes tecidos têm medidas de T1 e T2 diferentes. Tecidos com valores de T1 e T2 semelhantes são difíceis de separar. Por exemplo, a substância branca e a cinzenta são de difícil distinção no T2, enquanto a diferença é mais facilmente observável em T1 (Figura 4). A localização espacial é obtida a partir de variações espaciais do campo magnético.
[ Figura 4 ]
(a) Curvas demonstrando T1 e T2. Caso a medida em dois tecidos seja semelhante, o contraste entre eles na imagem será ruim. Caso exista uma diferença maior, o contraste será melhor. Os técnicos de ressonância magnética otimizam as sequências de aquisição a fim de potencializar o contraste e o efeito desejado. (b) Exemplos de imagem T1 e T2. Na imagem T1, é possível observar de maneira mais precisa a diferença entre a substância branca e a cinzenta. Na imagem T2, essa diferença não é tão precisa, porém é possível observar de maneira mais nítida a diferença entre o líquido cerebrospinal e a substância branca.
Fonte: Linden.6
As imagens em T1 são muito utilizadas para o estudo morfométrico do cérebro e sua correlação com sintomas ou diagnósticos psiquiátricos. Nos estudos iniciais com ressonância magnética estrutural, eram empregadas técnicas manuais para medir alguma região de interesse no cérebro. Era necessário que um radiologista experiente demarcasse a região, corte por corte, com o objetivo de estimar seu tamanho. Esse tipo de estudo ficou conhecido como estudo por region of interest (ROI). Apesar de ter aberto o caminho para evidências concretas ligando transtornos mentais e o cérebro, esses estudos são custosos, demorados e operador-dependentes. A partir do final da década de 1990, técnicas automatizadas ou semiautomatizadas de processamento levaram à popularização de métodos de neuroimagem no estudo de doenças psiquiátricas. Entre as abordagens automatizadas, a morfometria baseada em voxel (VBM, do inglês voxel-based morphometry) e a análise baseada em vértice têm destaque na literatura científica.
A VBM, resumidamente, consiste no alinhamento das imagens de todos os sujeitos do estudo em um “cérebro-padrão” (template). As imagens de cada pessoa são, então, classificadas em cada voxel (unidade 3D de imagem) como substância cinzenta, substância branca ou LCS, com base na intensidade do sinal no voxel, bem como na probabilidade conhecida do voxel de pertencer a uma classe específica. Isso permite estimar o volume estimado em cada voxel.
O software FreeSurfer, por sua vez, se baseia em identificar as fronteiras entre a substância cinzenta e a branca e entre a substância cinzenta e o LCS (superfície pial). O FreeSurfer faz isso por meio de um método que transforma cada uma dessas superfícies em uma “tela” de triângulos. Cada triângulo é chamado de face, e a junção de três triângulos é chamada de vértice. O programa consegue calcular a distância que separa a substância cinzenta da substância branca da superfície pial, produzindo uma medida estimada da medida cortical. Ao transformar as superfícies em uma tela, o FreeSurfer consegue deformar essas superfícies, inflando-as e transformando-as em uma esfera. Essa esfera é normalizada para uma esfera comum de todos os sujeitos, e as outras informações são transferidas para esse espaço, permitindo a análise estatística de dados de espessura cortical e área em cada vértice da imagem.
Ambas as técnicas são usadas extensivamente em pesquisa para comparar grupos de pacientes com controles saudáveis ou, ainda, para buscar correlatos de determinadas alterações comportamentais. Existem relatos de alterações estruturais em diversos transtornos psiquiátricos, como o transtorno bipolar (TB),7 o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC),8 o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT),9 a depressão,10 entre outros. Como exemplo, um dos achados mais replicados é a diminuição de volume cortical em diversas regiões e o alargamento dos ventrículos na esquizofrenia,11,12 presentes desde o primeiro episódio psicótico em algumas regiões.11
As diferentes possibilidades de aquisição e análise de dados produzem dificuldade na interpretação dos resultados de neuroimagem, e artigos que mostram resultados conflitantes são frequentes. Por exemplo, no autismo, existem artigos mostrando tanto volume maior do estriado13 quanto volume menor da mesma estrutura.14 Isso pode ocorrer devido a alguns fatores. A variação em estudo do tipo caso-controle pode ser explicada por outros fatores, por exemplo, a idade dos sujeitos, o uso de medicamento, gênero, comorbidade, etc. Porém, as escolhas de parâmetros de aquisição e do software de processamento podem levar a resultados diferentes. O Enhancing Neuroimaging Genetics Through Meta-Analysis (ENIGMA) é um consórcio que busca unir os dados de vários centros com o objetivo de unificar os métodos de análise para a obtenção de resultados mais consistentes, além de permitir análises que seriam possíveis apenas com muitos participantes. No autismo, a análise de dados de 49 centros, totalizando 1.571 pacientes e 1.651 controles, revelou diminuição de estruturas subcorticais, além de aumento de espessura do córtex frontal e diminuição de espessura do córtex temporal.15 O ENIGMA conta com grupos focados em estudar vários transtornos neuropsiquiátricos que também utilizam outras modalidades de imagem, como imagem do tensor de difusão (DTI, do inglês diffusion tensor imaging) e de ressonância magnética funcional (IRMf). Uma lista completa dos trabalhos está disponível no site ENIGMA.[1]
[1] Disponível em: http://enigma.ini.usc.edu/publications/
Imagem do tensor de difusão
Imagens ponderadas em difusão (DWI, do inglês diffusion weighted imaging) capturam diferenças no movimento das moléculas de água nos tecidos. Quando a difusão da água ocorre de maneira livre (sem barreiras), seu movimento tende a ser isotrópico. Todavia, quando existe alguma barreira, por exemplo, as fibras de substância branca, a difusão da água ocorre de maneira anisotrópica (Figura 5). Com a aquisição de pelo menos seis direções de difusão (apesar de atualmente serem mais comuns sequências de aquisição com mais de 30 direções), a técnica de tensor de difusão fornece informações úteis. O tensor de difusão pode ser ilustrado como uma elipse, para cada unidade da imagem, ou seja, voxel (Figura 5). Essa técnica é de grande importância, pois permite o estudo da conectividade estrutural do cérebro, por meio de medidas relacionadas aos feixes de substância branca. Por exemplo, é possível reconstruir tratos de substância branca (tractografia) ou obter medidas quantitativas de integridade da substância branca. A medida mais utilizada em pesquisa nos transtornos psiquiátricos é a anisotropia fracional (FA, do inglês fractional anisotropy). Trata-se de uma medida de 0 a 1, em que 0 corresponde à difusão totalmente isotrópica, e 1, à difusão totalmente anisotrópica.
[ Figura 5 ]
As imagens representam a visualização do vetor principal de movimento da água, modulada pelo valor da FA. É possível a visualização dos principais tratos de substância branca. A difusão pode ser anisótropica, quando é restrita pelas fibras do axônio (valor de FA próximo a 1), ou isotrópica, quando se dá de maneira igual em todas as direções (valor de FA próximo a 0), seja por ocorrer livremente, como no líquido cerebrospinal, seja por ocorrer de maneira igualmente restrita, como na substância cinzenta.
A medida de FA é a mais utilizada em pesquisa em psiquiatria. De maneira geral, a FA e outras medidas de DTI costumam ser utilizadas como marcador das propriedades da microestrutura da substância branca. Elas estão relacionadas a integridade dos feixes de substância branca, coesão dos tratos, densidade das fibras e mielinização. Assim, é esperado que feixes de fibras mais coesos tenham valores mais altos de FA, enquanto, em um processo patológico com perda de coesão das fibras de substância branca, ocorre diminuição dos valores de FA. Por exemplo, na esquizofrenia, são encontradas alterações de FA em vários tratos de substância branca (de maneira mais consistente a cápsula interna, o corpo caloso, o feixe do cíngulo e o fascículo uncinado) em pacientes crônicos, em primeiro episódio psicótico e até mesmo em alto risco para psicose.16 De maneira conjunta, esses achados fortalecem a hipótese de que alterações na conectividade estrutural são centrais na patogênese do transtorno.
Ressonância magnética funcional
A técnica de imagem de ressonância magnética é dita funcional quando reflete mudanças em um processo fisiológico, por exemplo, no fluxo sanguíneo, não apenas em uma imagem estrutural estática do cérebro. A IRMf utiliza um componente de sinal chamado de dependente do nível de oxigênio no sangue (BOLD, do inglês blood oxygen level-dependent).17
A imagem BOLD utiliza como contraste diferenças nas propriedades magnéticas da hemoglobina ligada ou não ao oxigênio. Quando expostos a um campo eletromagnético, os materiais são classificados como:
- Ferromagnéticos. Fortemente atraídos pelo campo magnético. Mantêm a propriedade após retirados do campo.
- Paramagnéticos. Elementos levemente atraídos pelo campo magnético.
- Diamagnéticos. Elementos levemente repelidos pelo campo magnético.
A desoxi-hemoglobina é paramagnética, enquanto a oxi-hemoglobina é diamagnética. A base para a IRMf é que a presença maior de desoxi-hemoglobina induz alterações no campo magnético que levariam a um tempo T2* mais rápido. No entanto, o que se vê durante a atividade cerebral é o inverso (aumento do sinal T2*). Isso ocorre devido ao fato de que a atividade cerebral induz aumento do fluxo sanguíneo local, levando à diminuição relativa da desoxi-hemoglobina. Isso leva a aumento do tempo T2* e ao consequente aumento do sinal captado pelo equipamento de ressonância magnética (Figura 6).17 Na IRMf, essa variação do sinal é captada ao longo do tempo; assim, é registrada uma série temporal da flutuação do sinal ao longo do tempo para cada unidade da imagem (voxel).
[ Figura 6 ]
A IRMf captura mudança de sinal T2*. O aumento de atividade cerebral leva a aumento do fluxo sanguíneo, o que ocasiona mudança na proporção de desoxi-hemoglobina, ocasionando, por conseguinte, o aumento do sinal T2*. As variações no sinal são captadas ao longo do tempo para cada voxel.
Os estudos de IRMf podem ser realizados por meio de uma tarefa durante o exame (task-based IRMf) ou em repouso (resting-state IRMf [rsIRMf]). Um experimento típico de task-based IRMf emprega um (ou mais) estímulo sensorial (geralmente sonoro ou visual) e uma resposta ao estímulo pelo participante (p. ex., apertar um botão ao ler determinada palavra). De maneira simplificada, na task-based IRMf, procura-se a correlação do sinal captado em cada voxel com o que seria esperado, uma vez que o tempo de início e a duração dos estímulos são conhecidos. Assim, é possível identificar quais regiões são ativadas durante determinada condição.18
Na rsIRMf, a análise tem a intenção de encontrar regiões em que a flutuação do sinal ocorre de maneira semelhante ao longo do tempo, ou seja, encontrar padrões de atividades em uma rede de atividade coerente. Diferentemente do que ocorre na task-based IRMf, em que o indivíduo deve executar uma tarefa específica, na rsIRMf, ele é orientado a olhar apenas para um ponto fixo.18
A primeira abordagem de análise de rsIRMf é chamada de seed based. Após a extração da série temporal de uma região-alvo (seed), tipicamente delineada de um estudo prévio de task-based IRMf, é feita a correlação dessa série temporal com o restante do cérebro. Assim, é possível encontrar a topografia da rede conectada à região de interesse (seed). Esse padrão pode ser comparado em diferentes grupos de indivíduos, por exemplo, entre pacientes e controles. Uma segunda maneira é utilizar uma abordagem baseada somente nos dados (chamada de data-driven ou model-free), sem seleção a priori de uma região ou de uma rede. Um exemplo desse tipo de análise é a análise de componentes independentes (ICA, do inglês independent component analysis). De maneira muito breve, a ICA separa os voxels do cérebro em subcomponentes, assumindo que esses componentes são estaticamente independentes um do outro. Os padrões especiais dos componentes são semelhantes ao padrão encontrado nas análises baseadas em regiões-alvo (seed).18
Um terceiro tipo de análise subdivide as diferentes regiões do cérebro em nodos e computa a relação entre cada região, para obter medidas globais da conexão entre diferentes regiões cerebrais. Geralmente, o cérebro é dividido em regiões com base em um atlas anatômico ou funcional. A série temporal de ativação para cada região é calculada e depois comparada com a série temporal de todas as outras regiões.18
Ambas as modalidades de IRMf são muito utilizadas em pesquisa, e sua aplicação depende do objetivo do estudo. O pesquisador pode estar interessado em encontrar um correlato relacionado a um déficit específico, por exemplo, de função executiva ou linguagem em esquizofrenia e utilizar uma tarefa para investigar especificamente as mudanças que ocorrem durante a execução de determinada função.19 De metodologia mais fácil, a rsIRMf é muito utilizada em estudos multicêntricos, o que torna seu resultado mais fácil de replicar e de ser analisado em estudos com número grande de sujeitos.20 É interessante ressaltar que os principais circuitos cerebrais foram identificados de maneira consistente em mais de um tipo de análise de rsIRMf em diferentes amostras.21
PET e SPECT
Consideradas modalidades de imagem molecular, a PET e a SPECT se baseiam em princípios semelhantes. Ambas dependem da administração de um radiofármaco (também chamado de traçador) que emite um fóton único (no caso da SPECT) ou um raio gama (no caso da PET).22 O decaimento radioativo é um processo no qual o núcleo de um átomo instável perde energia pela emissão espontânea de radiação ionizante. Na SPECT, um dos radioisótopos mais comumente utilizado é o tecnécio-99m (99mTC).22 A detecção dos fótons é realizada por um detector chamado de câmara gama. Após a aquisição do sinal, a imagem é reconstruída de maneira semelhante a uma TC. Na PET, o radiofármaco (mais comumente marcado com flúor-18 [18F]) emite um pósitron.22 Esse pósitron, por sua vez, é destruído e emite dois fótons em direções contrárias. O princípio da PET é captar os dois fótons simultaneamente e, assim, determinar o local da emissão e formar a imagem. A PET tem resolução temporal e espacial melhor, porém o radiofármaco utilizado apresenta meia-vida muito mais curta (minutos a horas) e necessita ser produzido em um cíclotron, o que torna a PET um exame mais caro e com logística mais difícil. Já a SPECT tem resolução espacial e temporal pior, porém o processo de obtenção do radiofármaco e a meia-vida mais longa tornam o exame mais barato e de fácil acesso.22
A PET e a SPECT têm como principais vantagens sobre outras modalidades de imagem o fato de permitirem o estudo in vivo de características específicas do funcionamento cerebral.23 Existem vários traçadores disponíveis, e a escolha do traçador é um passo importante em estudos de PET e SPECT. Existem radiofármacos desenvolvidos para a avaliação de metabolismo fluorodesoxiglicose [18F]FDG ou fluxo cerebral [99mTc] exametazime ou hexametilpropilenoaminoxima (HMPAO), para marcarem alvos específicos, como placas amiloides [N-Metil-11C]2-(4’-metilaminofenil)-6-hidroxibenzotiazol ([11C]PIB, “composto de Pittsburgh B), presentes na doença de Alzheimer,23 ou traçadores para transporte de dopamina (DA) que são úteis na avaliação de pacientes com doença de Parkinson,23 e também para uso na pesquisa da esquizofrenia24 e de outros transtornos mentais (sendo um dos mais amplamente disponíveis o [99mTc]-Trodat).23,25
Neuroimagem e a prática clínica atual
Apesar de muitos avanços na compreensão dos mecanismos acerca dos transtornos mentais e dos circuitos envolvidos nos sintomas e nas alterações de comportamento, são poucas as aplicações da neuroimagem na prática clínica atual. Como citado na introdução, seu uso permanece restrito ao diagnóstico diferencial de transtornos mentais com patologias orgânicas ou no diagnóstico diferencial de quadros demenciais. A principal dificuldade é extrapolar os achados de grupo para o âmbito individual. Em outras palavras, a maioria dos estudos e métodos de análise de imagem se dedicou a encontrar diferenças entre grupos de pacientes e grupos de pessoas saudáveis.26 Porém, apesar de existirem diferenças de grupo, há sobreposição nas medidas de indivíduos saudáveis e grupos de pessoas com um transtorno mental. Dessa maneira, torna-se difícil a descrição de um marcador diagnóstico de doença. De modo semelhante, outros marcadores úteis, por exemplo, resposta terapêutica, são de difícil identificação por meio de métodos estatísticos tradicionais.26
Abordagens recentes estão tentando trazer os resultados para o âmbito individual mediante algoritmos de aprendizado de máquina. É possível treinar um algoritmo para utilizar dados de IRM para identificar se a pessoa pertence a determinado grupo ou qual o risco de ela vir a desenvolver um transtorno mental. No entanto, a capacidade de discriminação entre pacientes e indivíduos saudáveis ainda se encontra aquém da desejável, com a acurácia variando muito de estudo para estudo. Existem dificuldades para aplicar esses algoritmos de maneira generalizada ao redor do mundo, além de ainda não haver um consenso para a aplicação desses métodos. Porém, os resultados iniciais são animadores. Um dos maiores estudos até o momento, o ENIGMA, reportou acurácia de 45,23% a 81,07% na identificação de pacientes com TB, considerando 13 amostras independentes de pacientes, sendo que, ao combinar os dados, foi obtida acurácia de 65.23%.27 O ideal para algum uso clínico seria acurácia de pelo menos 80%, todavia esse estudo mostra que é possível a combinação de diferentes amostras no treinamento de tais algoritmos. A integração de diferentes modalidades de imagem, com dados de genética, neuropsicologia e aspectos clínicos, pode melhorar ainda mais o resultado de tais algoritmos e é de grande interesse para pesquisas atuais e futuras.26
Referências
Conteúdo originalmente publicado em: QUEVEDO, J. ; IZQUIERDO, I. (Orgs.). Neurobiologia dos transtornos psiquiátricos. Porto Alegre: Artmed, 2020. 388 p.
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Autores
André Zugman
Andrea Parolin Jackowski